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Abécédaire Gilles Deleuze
Sumário elaborado por Charles J. Stivale
Romance
Languages and Literatures,
Traduzido com autorização do autor,
por Tomaz Tadeu da Silva,
do original
em inglês
Nota do tradutor
Esta tradução é apenas um rascunho e não sofreu nenhum revisão. É preciso
revisar a tradução em si, a correspondência entre certas escolhas do tradutor para
o inglês e o original francês e a digitação. À medida que trechos forem revisados,
eles serão assinalados aqui.
Nota do Professor Charles J. Stivale
O que se segue é o sumário de uma série de entrevistas, em três partes, oito
horas, de Gilles Deleuze, feita por Claire Parnet e filmada por Pierre-André
Boutang, em 1988-89. Destinada a ser tornada pública apenas após a morte de
Deleuze, essas entrevistas foram, apesar disso, mostradas no Canal Arte, entre
novembro de 1994 e a primavera de 1995, isto é, durante o ano anterior à sua
morte.[No Brasil, o filme foi veiculado no circuito restrito da TV Escola
Em vez de fornecer uma transcrição e tradução [do francês], tento fornecer os
principais pontos das questões colocadas por Parnet e das respostas de Deleuze,
todos os erros e omissões sendo de minha inteira responsabilidade.
Uma breve descrição do "cenário" da entrevista: Deleuze está sentado em frente
de uma lareira sobre a qual há um espelho e em frente a ele está Claire Parnet. A
câmera está localizada atrás do ombro esquerda de Claire, de forma que,
dependendo do foco da câmera, suas costas estão parcialmente visíveis e, com
um foco mais amplo, ela está também visível no espelho. A qualidade da produção
é bastante boa, e no conjunto de três fitas agora comercialmente disponíveis
[Éditions Montparnasse
], Boutang decidiu tirar, por meio da edição, os saltos entre
as trocas de fita; apesar disso, Deleuze é bastante compreensivo com as
pequenas quebras no movimento da produção.
Antes de começar a discutir a primeira "letra" de seu abecedário, Deleuze
menciona a premissa dessa série de entrevistas: que Parnet e Boutang tinham
escolhido o formato de abecedário e que indicaram a Deleuze quais seriam os
temas, mas não questões específicas. Ele diz que responder questões sem ter
antecipadamente pensado sobre elas é algo inconcebível para ele, mas que se
consola com a condição de que as fitas só serão usadas após sua morte. Assim,
isso, de certa forma faz com que ele sinta bastante aliviado, como se fosse uma
folha de papel, ou até mesmo um estado de puro espírito. Mas ele também se
pergunta sobre o valor disso tudo uma vez que todo mundo sabe que um puro
espírito não é alguém que dá respostas muito profundas ou inteligentes a questões
que são colocadas.
A de Animal
Parnet começa lendo uma citação de W. C. Fields que ela aplica a Deleuze:
"Um homem que não gosta de animais ou crianças não pode ser de todo mau".
Ela deixa as crianças de lado para perguntar sobre a relação de Deleuze com
os animais. Ela sabe que ele não é muito amigo de animais domésticos, mas
observa que ele tem um bestiário considerável, bastante repugnante, na
verdade - de piolhos, de pulgas - em seus escritos, e que ele e Guattari
desenvolveram o animal em seu conceito de "devir-animal". Assim, ela se
pergunta qual é a relação de Deleuze com os animais.
Deleuze é bastante lento na resposta a essa pergunta, dizendo que não se
trata tanto de gatos e cachorros, ou de animais desse tipo. Ele indica que ele é
sensível a algo nos animais, mas o que o incomoda são animais domésticos,
familiais e familiares. E lembra o "momento fatal" em que uma criança traz um
gato perdido para casa com o resultado de que há sempre um animal em sua
casa. O que acha desagradável é que ele não gosta de "coisas que esfregam"
(les frotteurs); e ele particularmente reprova cachorros por latir, o que ele
chama de "o grito mais estúpido", a vergonha do reino animal. Ele diz que ele
suporta melhor (embora não por muito tempo) o lobo uivando para a lua do que
latindo.
Além disso, ele observa que as pessoas que realmente gostam de gatos e
cachorros não têm com eles uma relação humana, por exemplo, crianças que
têm uma relação infantil com animais. O que é essencial, argumenta D, é ter
uma relação animal com animais. Deleuze tira suas conclusões ao observar
pessoas passeando com seus cachorros ao longo de sua rua isolada,
observando-as falar com seus cachorros de uma forma que ele considera
"amedrontadora" (effarant). Ele reprova a psicanálise por transformar as
imagens de animais em simples símbolos de membros da família, como na
interpretação dos sonhos. Deleuze conclui perguntando que relação se deveria
ou se poderia ter com um animal e especula que seria melhor ter uma relação
animal (não uma relação humana) com um animal. Mesmo caçadores têm esse
tipo de relação com sua presa.
Sobre seu bestiário, Deleuze admite sua fascinação por aranhas, piolhos e
pulgas, indicando que mesmo sua raiva por certos animais é alimentada por
sua fascinação. A primeira coisa que o fascina, e distingue o que faz um
"animal", é que toda animal tem um mundo limitado, extraordinário, reagindo a
bem poucos estímulos (ele discute o restrito mundo dos piolhos com algum
detalhe), e ele é fascinado pelo poder desses mundos. Depois, uma segunda
coisa que distingue um animal é que ele também tem um território (Deleuze
indica que, com Guattari, ele desenvolveu um conceito quase filosófico sobre
territórios). Constituir um território é quase como o nascimento de uma arte:
fazer um território não é simplesmente uma questão de marcas defecatórias e
urinárias, mas também de uma série de posturas (ficar ereto/sentar para um
animal), uma série de cores (que um animal assume), uma canção (un chant).
Três dos determinantes da arte são: cores, linhas, canção - diz D, arte em seu
estado puro. Além disso, deve-se considerar o comportamento no território
como o domínio de propriedade e posse, o território como "minhas
propriedades" à maneira de Beckett ou Michaux. Deleuze faz, aqui, uma breve
digressão, para discutir a necessidade ocasional, em filosofia, de criar mots
barbares, palavras bárbaras, mesmo que a palavra exista em outras
linguagens, alguns termos que ele e Guattari criaram juntos. A fim de refletir
sobre o território, ele e Guattar criaram "desterritorialização" (Deleuze diz que
ele encontrou um equivalente inglês de "o desterritorializado" em Melville, com
outlandish. Em filosofia, ele diz, a invenção de um mundo bárbaro é algumas
vezes, necessária para dar conta de uma nova noção: assim, não haveria
qualquer territorialização sem um vetor de deixar o território,
desterritorialização, e não há qualquer deixar o território, nenhuma
desterritorialização, sem um vetor de re-territorialização em algum lugar. Em
animais, esses territórios são expressos e delimitados por uma infindável
emissão de sinais, reagir a sinais (p. ex., uma aranha em sua teia) e produzir
sinais (p. ex., a trilha de um lobo ou algo mais), reconhecidos por caçadores e
rastreadores em uma espécie de relação animal.
Aqui, Parnet pergunta-se se existe uma conexão entre essa emissão de sinais,
território e escrita. Deleuze diz que eles estão conectados ao se viver uma
existência aux aguets, être aux aguets, estar sempre à espreita, como um
animal, como um escritor, um filósofo, nunca tranqüilo, sempre olhando por
sobre os ombros. Escreve-se para leitores, "para" significando "à l'attention de",
"para com", "à sua atenção". Mas também escreve-se por não-leitores, isto é,
"por" significando "no lugar de", como fazia Artaud ao dizer que ele escrevia
para analfabetos, para idiotas, em seu lugar. Deleuze argumenta que pensar
que escrever é alguma pequena tarefa privada é vergonhoso; em vez disso,
escrever significa jogar-se em uma tarefa universal, seja ela um romance ou
filosofia. Parnet refere-se, em um parênteses, à discussão que Deleuze e
Guattari fazem de Lord Chandos por Hoffmmanstahl em Mil platôs. Deleuze diz
que escrever significa empurrar a linguagem, a sintaxe, até o fim, a um limite
particular, umlimite que pode ser uma linguagem de silêncio, ou uma
linguagem de música, ou uma linguagem que é, por exemplo, um doloroso
lamento (cf. A metamorfose de Kafka). Deleuze argumenta que não são os
homens, mas os animais que sabem como morrer, e ele volta aos gatos, à
forma como um gato busca um canto para morrer, um território para a morte.
Assim, o escritor empurra a linguagem ao limite, do canto, e um escritor é
responsável por escrever "por", no lugar de, animais que morrem, mesmo
fazendo filosofia. Aqui, ele diz, está-se na fronteira que separa o pensamento
do não-pensamento.
B de Boire-Beber
Parnet pergunta o que significava para Deleuze beber quando ele bebia.
Deleuze brinca que ele costumava beber bastante, mas teve que parar por
razões de saúde. Beber, ele diz, é uma questão de quantidade. As pessoas
zombam de viciados e alcoólatras que fazem de conta que são capazes de
deixar a droga ou o álcool. Mas o que eles querem, diz D, é chegar à última
bebida/ao último copo. Um alcoólatra nunca pára de parar de beber, nunca
pára de chegar à última bebida. "Última", aqui, significa que ele não consegue
suportar beber mais um copo naquele dia particular. É o último ao seu alcance,
em contraste com o último além de seu alcance que o faria cair. Assim, a busca
é pelo penúltimo gole, pelo último gole... antes de começar o dia seguinte.
Parnet pergunta como se pára de beber, e Deleuze diz que Michaux disse tudo
que tinha a se dizer sobre o assunto. Beber está ligado com trabalhar; bebida e
drogas podem representar um perigo absoluto que nos impede de trabalhar. A
bebida e as drogas não são necessárias para se trabalhar, mas sua única
justificativa seria se elas nos ajudassem a trabalhar, mesmo ao risco de
prejudicar a saúde. Deleuze refere-se aos escritores americanos, cita Thomas
Wolfe, Fitzgerald, como uma série d'alcoolique (série alcoólica). Beber os
ajudava a perceber aquele algo que é demasiado forte na vida. Deleuze diz
que ele pensava que beber o ajudava a criar conceitos filosóficos, mas ele se
deu conta então de que não ajudava em absolutamente nada. À observação
sobre escritores franceses alcoólatras, Deleuze responde, claro, há muitos,
mas há uma diferença de visão entre os escritores franceses e os americanos.
Ele termina por se referir a Verlaine, "um dos maiores poetas franceses", o qual
costumava passar, a caminho para o seu copo de absinto, pela rua onde
Deleuze mora.
EINÍCIO
SPAÇOC de CulturaESPAÇOALFABETO
ESPAÇO
[Quando Parnet lê este título, Deleuze responde laconicamente, "oui, pourquoi
pas?" ("sim, por que não?"].
Parnet pergunta o que significa, para D, "être cultivé" (ser culto). Ela fá-lo
lembrar que ele disse que não é "cultivé", que ele em geral lê, vê filmes,
observa coisas apenas em função de algum
projeto
observa ela, ele sempre fez um esforço visível para sair de casa, para ir ao
cinema, a exposições de arte, como se houvesse alguma espécie de prática
nesse esforço de cultura, como se ele tivesse alguma espécie de prática
cultural sistemática. Assim, ela se pergunta o que entende por esse paradoxo
e, de forma mais geral, por "cultura".
Deleuze diz que não vive como um "intelectual" ou que não vê a si próprio
como "cultivé" porque quando vê algum "cultivé", ele fica simplesmente "effaré",
tomado de espanto e não necessariamente com admiração. Ele vê as "pessoas
cultas" (gens de culture) como possuindo um "savoir effarant", um corpo
assustador de conhecimento, que conhece tudo, que é capaz de falar sobre
tudo. Assim, ao dizer que ele não é nem um intelectual, nem "cultivé", Deleuze
entende isso no sentido de que ele afirma que não tem nenhum "conhecimento
de reserva" (aucun savoir de réserve), nenhum conhecimento em estoque.
Tudo que ele aprende, ele o faz para uma tarefa particular, e uma vez que ela
tarefa foi completada, ele então esquece tudo e tem que começar do zero,
exceto em certos casos raros (p. ex., Spinoza, que está no seu coração e na
sua mente).
Assim, por que, ele pergunta, ele não admira "este conhecimento assustador"?
Parnet pergunta se ele pensa que esse tipo de conhecimento é erudição, ou
apenas uma opinião, e Deleuze diz, não, não é erudição. Ele diz que ele pode
nomear alguém que é assim porque ele tem toda a admiração por ele: Umberto
Eco, que é espantador, é como apertar um botão, ele pode falar sobre qualquer
coisa, e ele inclusive sabe que é assim. Deleuze diz que isso o assusta e que
ele não inveja isso de forma alguma.
Ele continua, brincando a respeito de algo que ele fez desde que se aposentou,
desde que deixou de ensinar. Falar é um pouco sujo, ele diz, enquanto
escrever é mais limpo. Falar é fazer charme (faire du charme), e Deleuze liga
isso a assistir conferências, algo que ele não pode suportar. Ele não viaja mais
por razões de saúde, mas para ele, intelectuais que viajam é uma coisa sem
sentido, seus deslocamentos para dar palestras, mesmo durante as refeições
ele falam com intelectuais locais. "Não suporto falar, falar, falar", e é nesse
sentido, vendo a cultura ligada à palavra falada que faz com que ele odeie a
cultura [Deleuze utiliza o verbo francês bastante forte haïr para expressar esse
sentimento].
Parnet acrescenta, em um parênteses, que será exatamente essa separação
entre a palavra escrita e a palavra falada que retornará na letra "P", quando
eles falarem sobre a sedução da palavra na docência de D. Depois, ela retorna
ao esforço, à disciplina mesmo, que Deleuze impõe a si mesmo, apesar disso,
para sair de casa, para ver exposições ou filmes. Ela pergunta o que essa
prática significa para ele, se é uma forma de prazer para ele.
Deleuze responde "sim", certamente é prazer, embora nem sempre. Ele diz que
ele vê isso como parte de seu investimento em estar "alerta" (être aux aguets;
cf. "A como em Animal"). Ele acrescenta que ele não acredita em cultura; ele
acredita, antes, em encontros (rencontres), mas esses encontros não ocorrem
com pessoas. As pessoas pensam que é entre pessoas que os encontros se
dão, como entre intelectuais em um colóquios. Os encontros ocorrem, antes,
com coisas, com uma pintura, uma peça musical. Com as pessoas, entretanto,
essas reuniões não são, de forma alguma, encontros; esses tipos de encontros
são geralmente decepcionantes, catastróficos. Aos sábados ou domingos,
quando ele sai de casa, ele está certo de que vai ter um encontro; ele
simplesmente sai de casa, em estado de alerta para possíveis encontros, para
ver se ele pode encontrar algum material de encontro, em um filme, em uma
pintura.
Ele insiste que sempre que se faz algo, é também uma questão de se afastar
daquilo, de sair ou ir além daquilo (d'en sortir). Quando se faz filosofia, por
exemplo, permanecer "na"filosofia é também sair da filosofia. Isso não significa
fazer algo diferente, mas sair dela ao mesmo tempo que permanecer nela, não
necessariamente escrevendo um romance. Deleuze diz que ele seria incapaz
disso, de qualquer maneira, mas que mesmo que ele fosse capaz, seria
completamente inútil. Deleuze diz que ele sai ou vai além da filosofia por meio
da filosofia. Parnet pergunta o que ele quer dizer e Deleuze diz que uma vez
que isso será ouvido após sua morte, ele pode falar sem modéstia. E refere-se
ao seu (na época) recente livro sobre Leibniz, no qual ele insistia na noção de
"dobra", um livro de filosofia sobre essa estranha e pequena noção de dobra.
Como conseqüência, ele recebeu uma quantidade de cartas, algumas de
intelectuais, e duas outras cartas que eram bem diferentes. Uma era de uma
associação de dobradores de papel que diziam que eles estavam
completamente de acordo; o que Deleuze estava fazendo, elas também faziam!
Depois ele recebeu uma outra carta na qual o escritor dizia exatamente a
mesma coisa: a dobra somos nós!
Deleuze achou isso maravilhoso, ainda mais que lhe fazia lembrar uma história
em Platão, uma vez que para D, os grandes filósofos não escrevem sobre
abstrações, mas são grandes escritores de coisas bem concretas. Assim,
Deleuze sugere que Platão sugerirá uma definição, por ex., o que é um
político? Um político é im pastor de homens (pasteur des hommes). E com
essa definição, muitas pessoas acabam por dizer: nós somos políticos! O
pastor de ovelhas que fornece roupas para a humanidade; o açougueiro que
alimenta a humanidade. Assim chegam esses rivais, e Deleuze sente que ele
passou por isso muitas vezes: aqui vêm os dobradores de papel que dizem:
nós somos a dobra! E os outros que escreveram vão na onda, nós
compreendemos, nós concordamos inteiramente. Nunca paramos de nos
inserir nas dobras da natureza. Para eles, a natura é uma espécie de dobra
móvel, e eles pensam que é sua missão viver nas dobras das ondas.
Assim, com esses encontros, pode-se ir além da filosofia por meio da filosofia,
e Deleuze teve esses encontros com os dobradores de papel, com pessoas
que embarcaram nessa onda sem que ter que sair para vê-los: literalmente,
com esses encontros com onda, com os dobradores de papel, ele saiu da
filosofia por meio da filosofia. Assim, quando Deleuze vai a uma exposição, ele
está em estado de alerta para uma pintura que pode tocá-lo, que pode afetá-lo.
O teatro não apresenta essa oportunidade para encontros, ele diz, uma vez
que ele tem dificuldade em permanecer sentado por um tempo tão longo, com
certas exceções (como Bob Wilson, Carmelo Bene). Parnet pergunta se ir ao
cinema é sempre trabalho, se não existe, para ele, nenhum filme como mera
diversão. Deleuze diz que não é cultura, e Parnet pergunta se tudo que ele faz
inscreve-se em seu trabalho. Deleuze diz que não é trabalho, que ele está
simplesmente alerta, à espreita para algo que "passa", algo que é problemático,
que é divertido. [Aqui Parnet diz que Deleuze só vê Benny Hill, e Deleuze
concorda, dizendo que há razões pelas quais Benny Hill interessa a ele.] O que
Deleuze busca ao sair de casa é ver se existe uma idéia que ele pode extrair
de seus encontros, em filmes, por exemplo. Ele refere-se a Minelli, a Joseph
Losey, e indica que ele descobre o que existe em suas obras que afetam a ele:
que esses artistas são avassalados por uma idéia, é isso que Deleuze
considera como um encontro. Parnet interrompe D, dizendo que ele já está
entrando na letra "I", e por isso ele deve parar. Deleuze diz que ele só queria
indicar o que era um encontro para ele, e não encontros com intelectuais. Ele
diz que mesmo quando ele tem um encontro com um intelectual, é com o
charme de uma pessoa, com o trabalho que ele está fazendo, que ele tem um
encontro, mas com as pessoas em si. "Je n'ai rien à foutre avec les gens, rien
du tout" ("Não tenho nada a ver com as pessoas, de forma alguma"). Parnet diz
que eles talvez se esfregam nele, como os gatos, e Deleuze ri, concordando
que pode ser o fato de que eles se esfregam ou o fato de que eles latem!
Parnet pergunta sobre o fato de Deleuze ter vivido em períodos culturalmente
ricos e em períodos culturalmente pobres, e pergunta sobre o momento de
agora: é rico ou pobre? Deleuze começa a rir; na sua idade, ele diz, depois de
tudo o que ele viveu, não é a primeira vez que ele vê um período pobre. A
Liberação e o período posterior estavam entre os mais ricos que se pode
imaginar, quando ele e outros estavam descobrindo coisas o tempo todo,
Kafka, os americanos, Sartre, na pintura, todo o tipo de polêmicas que podem
parecer infantis hoje, mas era uma atmosfera muito estimulante, muito criativa.
E o período antes de maio de 68 também, muito rico. E depois há períodos
empobrecidos, mas não é a pobreza que Deleuze acha perturbadora, mas,
antes, a insolência e a arrogância das pessoas que ocupam os períodos
empobrecidos. Quanto mais estúpidos, diz ele, mais felizes, como dizer que a
literatura é agora um pequeníssimo negócio privado.
Entretanto, ele se volta para algo que ele considera mais sério a esse respeito.
Ele viu recentemente um filme russo, Le Commisaire, que ele achou admirável,
perfeito. Mas isso o fez lembrar de um filme como os que os russos
costumavam fazer antes da guerra, na época de Eisenstein, como se nada
tivesse acontecido desde a guerra, como se o diretor fosse alguém que tinha
estado tão isolado em seu trabalho que ele havia criado um filme daquela
maneira, como os filmes que eram feitos há 20 anos, desde que ele tinha sido
criado em um deserto. O que é horrível, diz D, é ter nascido nesse deserto, e
ter sido criado nele, especialmente para aqueles que têm 18 anos agora.
Além disso, quando algo desaparece, ninguém nota porque ninguém sente
falta quando desaparece. Por exemplo, sob o regime de Stálin, a literatura
russa ao estilo do século XIX simplesmente desaparecera, e ninguém havia
notado. Hoje, há pessoas engenhosas, novos Beckett talvez, mas se eles não
conseguem ser publicados, nada parecerá estar faltando, ninguém sentira falta
dessa criação nova. Deleuze diz a afirmação mais impudente que ele jamais é:
Hoje nós não corremos o risco de nos enganar quando o editor Gallimard fez
ao se recusar inicialmente a publicar Proust uma vez que temos hoje os meios
para localizar e reconhecer novos Proust e novos Beckett. Deleuze diz que é
como dizer que ele têm alguma espécie de contador Geiger que os ajuda a
identificar um novo Beckett por meio da emissão de algum som ou de alguma
luz!
Deleuze diz que ele atribui a atual crise, o período do deserto, a três coisas: 1)
ao fato de que os jornalistas conquistaram a forma-livro, de que os jornalistas
acham agora bastante normal escrever um livro que dificilmente exigiria um
artigo de jornal. 2) Difundiu-se a idéia geral de que qualquer um pode escrever
uma vez que a escrita tornou-se o pequeníssimo negócio do indivíduo, de
arquivos de família, dos arquivos em nossa cabeça. As pessoas têm todo o tipo
de experiências pessoais e por isso decidem escrever um romance. 3) Os
clientes reais mudaram: os clientes da televisão não são os espectadores, mas,
antes, os anunciantes, os publicitários; no campo do livro, os clientes não são
os leitores potenciais, mas, antes, os distribuidores. O resultado é uma rotação
rápida, o regime do best-seller. Toda
literatura à
é arrasada por esse regime. É que isso que define um período de seca, o
perído de Bernard Pivot [apresentador dos programas literários televisivos,
Apostrophes e Bouillon de culture, ambos agora extintos], nulidade, o
desaparecimento de toda crítica literária fora da promoção comercial.
Entretanto, Deleuze conclui que não é assim tão sério, uma vez que sempre
haverá um circuito paralelo para a expressão, ou algum tipo de mercado negro.
Os russos perderam sua literatura, mas conseguiram de alguma forma
reconquistá-la. Parnet diz que, durante alguns anos, parecia que nada
realmente novo havia se desenvolvido, de forma que ela pergunta de que
forma algo novo emerge, e se Deleuze passou por isso. Deleuze responde,
sim, como ele sempre disse, o período entre a Liberação e a Nouvelle Vague, a
primeira parte dos anos 60, foi extremamente rico. É um pouco como Nietzsche
disse, Deleuze conclui, uma flecha é lançada no espaço: assim um período ou
um grupo lança uma flecha, e ela acaba por cair [Deleuze refere-se
provavelmente à frase de Nietzsche na 3ª Consideração extemporânea,
"Schopenhauer
einen Pfeil in die Menschen hinein, sie zielt nicht, aber sie hofft, dass der Pfeil
irgendwo hängen bleiben wird"; "A natureza atira o filósofo como uma flecha
em direção aos homens; não acerta o alvo, mas espera que a flecha fique
pendurada em algum lugar", TTS]. Dessa forma, a criação literária passa por
seus períodos de deserto.
INÍCIO
SPAÇOD de DesejoESPAÇOALFABETO
ESPAÇO
Parnet começa citando o verbete biográfico sobre Deleuze no dicionário Petit
Larousse (edição de 1988) que se refere ao seu trabalho com Guattari sobre,
entre outros temas, o desejo, citando o Anti-Édipo (1972). Uma vez que
Deleuze é considerado, diz Parnet, como um filósofo do desejo, então o que é
o desejo?
Deleuze começa dizendo que " 222k1021c não é aquilo que as pessoas pensavam que
fosse, mesmo naquela época. Trata-se de uma grande ambigüidade e de um
grande mal-entendido ou, antes, de um pequeno mal-entendido". Entretanto,
ele então aborda a questão com grande detalhe e às vezes de uma forma
comovente. Primeiramente, como a maioria das pessoas ao escrever um livro,
eles pensavam que iam dizer algo novo, especificamente que as pessoas que
escreveram antes deles não entenderam o que o desejo significa. Assim, como
filósofos, Deleuze, com Guattari, viram sua tarefa como sendo a de propor um
novo conceito de desejo. E conceitos, apesar do que algumas pessoas
pensam, referem-se a coisas que são extremamente simples e concretas.
O que eles queriam dizer era a coisa mais simples na palavra: até agora, fala-
se abstratamente sobre desejo porque se extrai um objeto que se supõe ser o
objeto do desejo. Deleuze enfatiza que nunca se deseja algo ou alguém, mas,
antes, sempre se deseja um agregado (ensemble). Assim, elas se perguntaram
qual era a natureza das relações entre elementos a fim de que houvesse
desejo, para que esses elementos se tornassem desejáveis. Deleuze refere-se
a Proust quando ele diz que o desejo por uma mulher não é tanto desejo pela
mulher quanto por uma paysage, uma paisagem, que está envelopada nesta
mulher. Ou, ao desejar um objeto, um vestido, por exemplo, o desejo não é
pelo objeto, mas pelo contexto global, pelo agregado, "eu desejo em um
agregado". Deleuze menciona ao que foi dito na letra B, sobre beber, sobre
álcool, e o desejo não apenas pela bebida, mas por seja lá qual for agregado
em que situamos o desejo pela bebida (com pessoas, em um café, etc.).
Assim, não existem nenhum desejo, diz Deleuze, que não flua em um
agenciamento e, para ele, o desejo sempre foi um construtivismo, construir um
agenciamento, um agregdo: o agregado da saia, de um raio de sol, de uma rua,
de uma mulher, de uma vista, de uma cor... construir um agenciamento,
construir uma região, juntar. Deleuze enfatiza que o desejo é construtivismo.
Parnet pergunta se é porque o desejo é um agenciamento que Deleuze
precisou ser dois, com Guattari, a fim de criar. Deleuze concorda que com
Guattari, eles criaram um agenciamento, mas que pode existir agenciamentos
de uma pessoa só bem como de duas pessoas, ou de algo que passa entre
dois. Tudo isso, ele continua, diz respeito a fenômenos físicos, e para que um
evento ocorra, algumas diferenças de potencial devem surgir, como um clarão
ou uma corrente, de forma que o domínio do desejo é construído. Assim, toda
vez que alguém diz, eu desejo isto ou aquilo, aquela pessoa está no processo
de construir um agenciamento, nada mais do que isso, o desejo não é nada
mais do que isso.
Parnet liga isso ao Anti-Édipo, ao afirmar que foi o primeiro livro em que ele
discutiu o desejo, assim como foi o primeiro que ele escreveu com outra
pessoa. Deleuze concorda; eles tiveram que entrar naquilo que era um novo
agenciamento para eles, escrevendo à deux, de forma que algo pudesse
"passar". E esse algo era uma hostilidade fundamental para com as
concepções dominantes de delírio (délire), particularmente contra a psicanálise.
Uma vez que Guattari tinha passado pela psicanálise e Deleuze estava
interessado nela, eles encontraram um terreno comum para desenvolver uma
concepção construtivistas do desejo. Assim, Parnet pede-lhe para definir
melhor como ele vê a diferença entre esse construtivismo e a interpretação
analítica. Deleuze a vê como bastante simples, com a psicanálise falando do
desejo exatamente da forma que fazem os padres, sob o disfarce da grande
lamúria sobre a castração que, para Deleuze, é uma espécie de uma enorme e
assustadora maldição contra o desejo.
No Anti-Édipo, eles tentaram se opor à psicanálise em três pontos principais,
nenhum dos quais ele, de forma alguma, mudaria:
1) Opor-se ao conceito psicanalítico do insconsciente como um teatro, com sua
constante representação de Hamlet e Édipo. Eles vêem o inconsciente como
uma fábrica, como produção. O inconsciente produz, como uma fábrica,
exatamente o oposto da visão psicanalítica.
2) O delírio, ligado do desejo, é o contrário do delírio ligado apenas ao pai ou à
mãe; em vez disso, nós "deliramos" sobre quase tudo, o mundo inteiro, a
história, a geografia, tribos, desejos, povos, raças, climas, aquilo que Rimbaud
referiu como (em "Mauvais Sang", Une saison en enfer) "eu sou um animal, um
Negro": onde estão minhas tribos, como minhas tribos estão organizadas,
sobrevivendo no deserto? O delírio, diz Deleuze, é político-geográfico,
enquanto a psicanálise o liga sempre a determinantes familiares. A psicanálise
nunca entendeu absolutamente nada, diz Deleuze, sobre os fenômenos do
delírio. Nós "desejamos" o mundo e não a nossa pequena família. E tudo isso
se intersecciona, ele continua: quando ele se referiu à literatura como não
sendo o negócio privado de alguém, não se trata de um delírio focalizado no
pai e na mãe.
3) O desejo é estabelecido e construído em um agenciamento que sempre
coloca diversos fatores em jogo, enquanto a psicanálise o reduz a um único
fator (pai, mãe, phallus), completamente ignorante do múltiplo, do
construtivismo, dos agenciamentos. Deleuze refere-se ao animal, à imagem do
pai, e depois ao exemplo do pequeno Hans que ele e Guattari utilizaram, mas
também a um segundo exemplo, como o animal (o cavalo, no Pequeno Hans)
nunca pode ser a imagem do pai, uma vez que os animais em geral vêm em
matilhas. Deleuze refere-se à redução que Freud faz de um sonho que Jung
lhe contou, Freud insistindo no "osso", singular, que ele acreditava ter ouvido
Jung dizer, quando Jung realmente tinha dito que ele havia sonhado sobre um
ossuário, uma multiplicidade de ossos. Assim, o desejo se constroi no coletivo,
no múltiplo, na matilha, e nós nos perguntamos qual é nosssa posição em
relação à matilha, fora, junto, dentro, no centro? Todos fenômenos de desejo.
Parnet resume tudo perguntando se Anti-Édipo, como um texto pós-maio de
1968, era um reflexo dos agenciamentos daquele período. Exatamente,
responde Deleuze, o ataque contra a psicanálise e o conceito de delírio das
raças, de tribos, de povos, de história, de geografia - tudo se conforma a 68,
tentando criar um "air sain", uma região de sanidade, dentro de tudo que estava
bloqueado e era fétido. Um delírio que era cósmico, delírio sobre o fim do
mundo e sobre partículas e elétrons.
Parnet continua com uma referência a "esses agenciamentos coletivos",
perguntando se Deleuze poderia contar outra vez algumas das tão divertidas
(ou nem tanto) anedotas sobre mal-entendidos que haviam ocorrido, por
exemplo em Vincennes, sobre colocar esses
conceitos
que quando eles assumiram sua esquizo-análise, contra a psicanálise, um
monte de estudantes pensaram que era legal ser louco. Em vez de contar
histórias engraçadas, Deleuze liga os mal-entendidos, em geral, a dois pontos,
que são mais ou menos uma coisa só: algumas pessoas pensavam que o
desejo era uma forma de espontaneidade, outros pensavam que era um
pretexto para fazer festa (la fête). Para Deleuze e Guattari, não era nenhuma
dessas coisas, mas isso pouco importava uma vez que agenciamentos
acabavam por ser criados, até mesmo aqueles que Parnet (e Deleuze)
chamam de "os loucos" (les fous), que tinham seu próprio discurso e
construíam seus próprios agenciamentos.
Assim, continua Deleuze, no nível da teoria, esses mal-entendidos - a
espontaneidade ou la fête - não eram a assim chamada filosofia do desejo, a
qual era, em vez disso: não se deixa psicanalizar, pare de interpretar, vai
construir e viver/experimentar com agenciamentos, busca os agenciamentos
que servem para você. O que é um agenciamento, pergunta ele? Não é o que
eles pensavem que fosse, mas para Deleuze, um agenciamento tem quatro
componentes ou dimensões:
1) Agenciamentos referem-se a "estados de coisas", de forma que cada um de
nós pode encontrar o "estado de coisas" que lhe serve (ele dá o exemplo do
beber, até mesmo de apenas beber café, e que nós encontremos aquele
"beber café" que se ajuste a nós como um "estado de coisa").
2) "Les énoncés", pequenos enunciados, como tipos de estilo, cada um de nós
encontrando um tipo de estilo de enunciação (ele refere-se outra vez ao
período logo após à Revolução Russa, que encontrou, outra vez, um estilo de
cinema; ou os novos tipos ou estilos de enunciação que se seguiram ao maio
de 1968).
3) Um agenciamento implica territórios, cada um de nós escolhe ou cria um
território, mesmo que seja apenas andando em um quarto.
4) Um agenciamento também implica processos de desterritorialização,
movimentos de desterritorialização.
É no interior desses componentes que o desejo flui, diz Deleuze.
Parnet pergunta se Deleuze sente-se de alguma forma responsável por
pessoas que ingerem drogas, que podem ter lido o Anti-Édipo um pouco
literalmente demais, como se pudesse ter incitado os jovens a cometer atos
estúpidos (conneries), e a resposta de Deleuze é bastante comovente. Ele diz
que eles sempre se sentiram responsáveis por qualquer pessoa para a qual as
coisas deram errado, e ele pessoalmente tentou fazer o que era possível para
que as coisas dessem certo. Ele diz que ele nunca brincou com coisas como
essas; sua única questão de honra é que ele nunca disse pra ninguém pra ir
adiante, está ok, fica chapado, mas sempre tentando ajudar as pessoas a sair
dessa. Ele continua, dizendo que é muito sensível ao menor detalhe que possa
fazer com que alguém de repente caia num estado de branco total (état de
blanc). Ele nunca culpou ninguém, nunca disse a alguém que estava fazendo
algo errado, mas ele sentiu o enorme peso das direções que algumas vidas
podiam tomar, pessoas e especialmente pessoas jovens que podiam ingerir
drogas até chegar ao ponto do colapso, ou beber até chegar ao ponto de cair
em algum estado "selvagem" (état sauvage). Ele não está aí pra impedir
ninguém de fazer algo, não faz o papel de polícia ou pai/mãe, mas tentou,
mesmo assim, impedir que eles se reduzissem ao estado de trapo (état de
loque). Não posso suportar, "je ne le supporte pas", o momento em que haja
um risco de que alguém pire. Um velho que pira, Deleuze diz, que comete
suicídio, ele ao menos viveu sua vida, mas um jovem que pira, diz Deleuze, é
insupportable. Ele sempre se dividiu, ele conclui, entre a impossibilidade de
colocar a culpa em alguém e a recusa absoluta de que qualquer pessoa possa
ser reduzido ao estado de trapo. Ele admite que é difícil calcular que princípios
podem ser aplicados, só podemos lidar caso a caso, e o mínimo que podemos
fazer é impedi-los de se reduzirem a trapo.
Parnet pressiona nessa direção, perguntando sobre os efeitos do Anti-Édipo, e
Deleuze continua dizendo que o propósito de Anti-Édipo era o de impedir que
as pessoas caíssem nesse estado de trapo, o estado clínico de esquizo. Parnet
observa que os inimigos do livro criticaram-no por ele aparentemente ser uma
apologia da permissividade. Deleuze diz que se ele for lido de perto, se verá
que ele sempre assinala uma extrema prudência. A lição do livro: não se torne
um trapo; oponha-se a processos de esquizofrenização do tipo "hospital
repressivo". Para Deleuze e Guattari, seu terror consistia em produzir uma
"criatura de hospital". O valor daquilo que os anti-psiquiatras chamavam de "a
viagem" do processo esquizofrênico estava precisamente em tentar conjurar a
produção de "loques d'hôpital", criaturas de hospital que se assemelhavam a
trapos.
Parnet pergunta se o Anti-Édipo ainda tem seus efeitos hoje, e Deleuze diz,
sim, é um belo livro, o único livro no qual aquele conceito de inconsciente foi
colocado, com os três pontos sobre as multiplicidades do inconsciente e do
delírio, o delírio mundo/cósmico e não o delírio da família, e o inconsciente
como uma máquina/fábrica, não um teatro. Ele diz que não tem a mudar
nesses pontos, e ele espera que ainda seja um livro a ser descoberto.
EINÍCIO
SPAÇOE de Enfance-Infância ESPAALFABETO
ÇO
Parnet lembra que Deleuze passou toda sua vida no 17º arrondissement de
Paris, então ela pergunta se ele foi criado em um família burguesa com
tendências politicamente conservadoras (de direita).
Deleuze fala com um certo ar divertido de sua infância, dizendo que sua vida
no 17º arrondissement foi como uma "chute", uma queda do quartier bastante
chique perto do Arco do Triunfo, onde ele nasceu, para vários apartamentos
durante a guerra, para a rua d'Aubigny por vários anos com sua mãe e, depois,
como adulto, para seu quartier, mais precisamente na rue de Bizerte, um bairro
de classe média. Deleuze diz que não tem certeza, se esse ritmo continuar, de
onde ele acabará nos próximos anos.
Quanto à sua família, sim, eles eram burgueses "de direita", mas ele diz que
ele tem poucas memórias de sua infancia (ele observa que parece que suas
memórias mais longínquas desapareceram, e que ele não é um arquivo). Ele
se lembra de certas crises, da falta de dinheiro que o salvou de ir estudar "chez
les Jesuites" (com os padres jesuítas), uma vez que ele teve que ir para a
escola secundária pública e não para uma escola privada, católica, devido às
dificuldades de dinheiro de sua família; além disso, o período antes da guerra e
o medo que a burguesia conservadora tinha da Frente Popular [Socialista], que
para eles representava a chegada do caos total. Eles eram anti-semitas, e
particularmente contra Leon Blum [socialista e judeu, líder do governo da
Frente Popular], o qual, para eles, era pior que o demônio. Deleuze insiste que
não se pode compreender como Pétain tomou o poder sem compreender o
ódio devotado no período pré-guerra ao governo de Blum.
Assim, ele lembra que ele vem de uma família burguesa "de droite",
completamente inculta, com um pai (Deleuze lembra-se dele de forma
carinhosa, lembrando-se também da atmosfera de crise e os sentimentos
violentos de seu pai - como um veterano da I Guerra Mundial - contra a
esquerda). Ele era engenheiro, um inventor, cujo primeiro negócio fracassou
pouco antes da guerra, tendo depois trabalhado em um fábrica construindo
dirigíveis - a fábrica foi depois tomada pelos alemães para construr barcos
infláveis.
Deleuze lembra que quando os alemães chegaram , invadindo a partir da
Bélgica, ele estava em Deauville (na Normandia, onde sua família passava os
verões), assim ele foi colocado na escola secundária de lá por um ano. Ele
lembra como uma imagem de Deauville ilustra a enorme mudança social da
Frente Popular. Com a introdução das "férias remuneradas", pessoas que
nunca viajavam podia agora ir à praia e ver o mar pela primeira vez. Deleuze
lembra a visão de um jovem de Limousin que ficara parada por cinco horas,
fascinada diante do extraordinário espetáculo do mar. E esta tinha sido uma
praia particular, para proprietários burgueses. Ele também lembra o ódio de
classe traduzido por uma frase pronunciada por sua mãe - "hélas" (
"infelizmente"), diz Deleuze - sobre a impossibilidade de freqüentar praias para
a qual pessoas "como essas" estariam vindo. Para burgueses como seus pais,
conceder férias aos trabalhadores significa perda de privilégio bem como de
território, pior mesmo do que os alemães ocupando as praias com seus
tanques.
Deleuze diz que lá, em Deauville, sem seus pais e com seu irmão mais novo,
ele era uma completa nulidade em seus estudos, até que algo ocorreu que fez
com Deleuze deixasse de ser um idiota. Até a mudança para Deauville e o ano
de liceu que ele passara durante a "estranha guerra", ele tinha sido uma
nulidade na escola, mas em Deauville, ele conheceu um jovem professor,
Pierre Halwachs (filho de um famoso sociológo), de saúde frágil e que por ter
apenas um olho havia sido dispensado do serviço militar. Para Deleuze, esse
encontro foi um despertar, e ele tornou-se algo como o díscipulo do jovem
"maître". Halwachs levava ele para a praia no inverno, para as dunas, e o
introduzia, por exemplo, às Nourriturs terrestres, de Gide, a Anatole France, a
Baudelaire, a outros livros de Gide, e Deleuze se transformou completamente.
Mas o fato de que eles passavam tanto tempo juntos fez com que as pessoas
começassem a comentar, e a senhora em cuja pensão Deleuze e seu irmão
estavam parando preveniu Deleuze sobre Halwachs, e depois escreveu aos
seus pais osbre isso. Os irmãos deveriam voltar a Paris, mas então os alemães
invadiram, e assim eles pegaram suas bicicletas para encontrar seus pais em
Rochefort... e en route eles deramde cara com Halwachs com seu pai! Mais
tarde na vida Deleuze reencontrou Halwachs, sem a mesma admiração, mas
com 14 anos Deleuze acha que ele estava inteiramente correto.
Parnet pergunta sobre seu retorno a Paris, freqüentando o Liceu Carnot.
Deleuze foi colocado em uma turma com um professor de filosofia chamado
Vialle, embora ele pudesse ter ido para uma turma cujo professor era Merleau-
Ponty. Deleuze diz que ele não lembra exatamente por que, mas Halwachs
tinha-o ajudado a sentir algo importante na literatura; entretanto, desde de sua
primeiras aulas de filosofia, ele sabia que isso era algo importante, que ele faria
isso pelo resto de sua vida. (Deleuze lembra que isso ocorreu exatamente
quando o massacre, por parte dos alemães, da localidade francesa de
Oradour, havia sido anunciado, e que havia uma atmosfera bastante
politizada). Ele lembra Merleau-Ponty como sendo um tanto melancólico,
enquanto Vialle, que estava no fim de sua carreira, era alguém de quem
Deleuze gostava muito. A oportunidade de aprender conceitos filosóficos
atingiu-o com a mesma força com que algumas pessoas eram atingidas ao
encontrar personagens literários, Vautrin ou Eugenie Grandet; para ele a
filosofia era tão animada quanto qualquer obra literária. A partir daí ele não teve
mais nenhum problema escolar, deu-se muito bem como estudante. Parnet
pergunta sobre a atmosfera política, e Deleuze diz que havia pessoa de todas
as correntes políticas, mas não era a mesma consciência ou atividade política
do tempo de paz. Seus colegas de turma tinham uma certa consciência política
devido à presença de Guy Moquet, um estudante que participava da
Resistência e tinha sido morto pelos um ano mais tarde. Mas Deleuze lembra
que a política era um tanto camuflada durante a Ocupação uma vez que havia
colegas de todos os matizes políticos, desde simpatizantes da Resistência até
simpatizantes de Vichy.
Parnet diz que parece que, para Deleuze, sua infância teve realmente pouca
importância. Deleuze responde, sim, foi necessariamente assim. Ele considera
que a atividade de escrever não tem nada a ver com as questões individuais,
não é algo pessoal ou um pequeno negócio privado. Escrever é devir, ele diz,
devir-animal, devir-criança, e a gente escreve para a vida, para devir algo, seja
lá o que se quer, exceto devir um escritor e exceto devir um arquivo. Ele
respeita, sim, o arquivo, mas isso tem importância para alguma outra coisa. Ele
insiste que falar de sua própria vida pessoal não tem qualquer interesse, como
não tem nenhum interesse um arquivo pessoal. Deleuze pega um livro que ele
tem na mão, de um grande poeta russo, Ossip Mandelstam, e lê uma
passagem na qual o autor fala sobre quão pouca importância tem a memória e
especialmente para escrever. Deleuze concorda plenamente, e toma
emprestada de Mandelstam a idéia de que se aprende não a falar, mas a
gaguejar [Deleuze cita Mandelstam em seu ensaio "Begaya-t-il" em Crítica e
clínica]. A escrita é isso, diz Deleuze, gaguejar na linguagem, empurrar a
linguagem ao limite, gaguejar, devir um animal, devir uma criança, não a partir
da própria infância, mas, antes, da "infância do mundo". Um escritor não apela
diretamente a sua vida privada (aquilo que Deleuze chama de totalmente
abominável, uma verdadeira besteira - une dégoutation, la vraie merde), não
escavoca os arquivos de família, mas, antes, permanece uma criança do
mundo. Um escritor devém, mas não um escritor, nem seu próprio
memorialista.
Parnet faz o papel de "advogado do diabo" ("um papel muito perigoso", Deleuze
brinca com ela), ao perguntar se o livro Enfance, de Nathalie Sarraute constitui
uma exceção, se sua obra indica alguma espécie de fraqueza em seu conceito
de infância, e Deleuze discorda. Ele diz que Enfance não se centra, de forma
alguma, na infância dela, mas que ela inventa uma criança do mundo,
extraindo coisas de fórmulas e expressões para inventar uma linguagem do
mundo. [A referência implícita de Deleuze, aqui, é também ao ensaio de
Sarraute "Ich strebe" em L'usage de la parole; obrigado a Veronique Flambard-
Weisbart por essas referências]. Parnet pergunta se ele teve que passar por
alguma espécie de exercício estrito para limitar seu interesse na infância, que
de alguma forma ele deve surgir, e Deleuze sugere que este tipo de coisa
acontece por si mesmo. Ele pergunta o que há na infância que possa
interessar. Talvez relações com os pais, irmãos, mas isso é uma coisa apenas
de interesse pessoal, para o indivíduo, mas não para a escrita. Em vez disso, o
que é interessante é encontar a emoção de uma criança, não a criança que
uma vez se foi, mas também o sentimento de ser uma criança, uma criança
qualquer ("un enfant quelcoque"). Deleuze refere-se a alguém que conta ter
visto um cavalo morrer na rua antes da era do automóvel, e ele traduz isso em
termos de devir um escritor. Deleuze cita Dostoyevski, o dançarino Nijinksi,
Nietzsche, todos os quais viram um cavalo morrer na rua. Parnet diz, e Deleuze
concorda, que para ele foram as manifestações da Frente Popular, e ver seu
pai em conflito entre sua honestidade e seu anti-semitismo. Mas Deleuze
insiste, "eu era uma criança", e a importância desse artigo indefinido na
multiplicidade de uma criança. "Un enfant: l'article indefini est d'une richesse
extreme" ele conclui. O artigo indefinido é de uma extrema riqueza.
INÍCIO
SPAÇOF de Fidelidade ESPAALFABETO
Fica claro, na introdução de Parnet, que uma vez que a letra "A" estava tomada
com "Animal", ela não poderia usá-la para "Amizade" e foi por isso que ela
escolheu "fidelidade" para substituí-la. Ela evoca uma série de amigos
próximos de Deleuze, com os quais ele partilhou muitos anos de "fidelidade"
em suas amizades. Parnet pergunta se fidelidade e amizade estão
necessariamente ligadas, e Deleuze imediatamente diz que não se trata de
uma questão de fidelidade. Em vez disso, a amizade, para ele, é uma questão
de percepção. O que significa ter algo em comum com alguém? Não idéias em
comum, mas ter uma linguagem e mesmo uma
pré-linguagem
pessoas que nunca conseguiremos entender ou falar até mesmo sobre simples
assuntos, e outras das quais podemos discordar completamente, mas que
podemos compreender profundamente mesmo nas coisas mais abstratas,
tendo como base essa coisa indeterminada que é tão misteriosa.
A hipótese de Deleuze é que cada um de nós tem a capacidade de apreender
um certo tipo de charme, uma percepção de charme, isto é, um gesto, um
pensamento, mesmo antes que o pensamento efetue uma significação, uma
inocência, um charme que vai até às raízes da percepção, às raízes vitais, e
isso constitui uma amizade. Ele dá o exemplo de um frase que podemos ouvir
de alguém, uma frase vulgar, repulsiva, que deixa uma indelével impressão
sobre uma pessoa, não importa o que ela possa jamais fazer. O mesmo
acontece com o charme, apenas na direção contrária, o efeito indelével do
charme como uma questão de percepção, percebendo alguém com quem nos
ajustamos, alguém que nos ensina algo, que nos abre, nos desperta, que emite
sinais, e nós nos tornamos sensíveis a essa emissão de sinais, nós os
recebemos ou não, mas nós nos tornamos abertos a eles. E então podemos
gastar nosso tempo com alguma outra pessoa dizendo coisas que são
absolutamente sem importância.
Deleuze ri quando ele diz que ele acha a amizade extremamente cômica, e
Parnet fá-lo lembrar de como ele vê a amizade em termos de duplas. Deleuze
discute um amigo muito próximo, Jean-Pierre, com o qual ele tem uma longa
amizade, e eles constituem uma espécie de dupla que ele liga a personagens
de Mercier and Camier, de Becket, enquanto com Guattari, trata-se mais de
uma dupla tipo Bouvard et Pecuchet [romance de Gustave Flaubert], tentando
criar sua enorme enciclopédia que abarca todos os campos de conhecimento.
Não se trata de uma questão de imitar essas grandes duplas, ele diz, mas a
amizade é feita desse tipo de relação, mesmo quando há discordância.
Mas Deleuze diz, então, que na questão da amizade, há um mistéro que está
conectado diretamente à filosofia. Ele se volta, aqui, para oa conceito de amigo
tal como desenvolvido pelos gregos. A filósofo é um amigo da sabedoria, um
conceito que os gregos inventaram: como alguém que se volta para a
sabedoria sem ser sábio, com uma série de pretendentes atuando em uma
rivalidade de homens livres em todos os domínios, com eloqüência, tentativas
que eles perseguem (o pretendente é o que ele chama de "fenômeno grego por
excelência"). A filosofia é um rival por alguma coisa, e ao examinar a história da
filosofia, vemos que para alguns escritores, a filosofia é precisamente essa
conexão com a amizade e, para outros, uma conexão com o noivado
(fiançailles), por exemplo, Kierkegaard (fiançailles rompues, noivado rompido).
Parnet cita Blanchot e seu conceito de amizade, e Deleuze diz que tanto
Blanchot quanto Mascolo são dois escritores atuais que dão a maior
importância à amizade como a categoria mesma ou a condição mesma de
exercício do pensamento. Não um amigo real, mas a amizade como uma
categoria ou condição do pensamento [cf. O que é a filosofia?, para o
desenvolvimento deste conceito].
Deleuze conclui dizendo que ele adora desconfiar do amigo. Deleuze faz
referência a um poeta alemão, que diz que entre cão e lobo, há uma hora em
que devemos desconfiar do amigo, e ele diz que ele desconfia de seu amigo
Jean-Pierre, mas ele o faz com tal graça que isso não lhe causa nenhum mal.
Existe uma grande comunalidade de amizade, de forma que isso funciona bem.
Mas Deleuze insiste que não se trata, de forma alguma, de pequenas questões
pessoais; quando dizemos "amigo" ou "noivado rompido", devemos saber sob
quais condições o pensamento pode se exercer. Proust disse que a amizade é
zero, pessoalmente e para o pensamento, não o pensamento na amizade,
mas, antes, no amor ciumento, como a condiçãod e pensamento para Proust.
Parnet faz uma última questão, sobre sua amizade com Foucault, que não era
uma amizade de dupla, era profunda, mas distante. Deleuze diz que Foucault
era alguém do maior mistério para ele, talvez porque eles se conheceram muito
tarde na vida. Deleuze diz que ele sente um grande arrependimento em relação
a Foucault, embora o tenha respeitado enormemente. Ele diz que Foucault era
o caso raro de um homem que entrava em uma sala e tudo mudava. Foucault,
como todos nós, não era simplesmente uma pessoa, mas, antes, era se
houvesse uma rajada de ar ou alguma outra coisa atmosférica, uma emanação.
Foucault corresponde, diz Deleuze, ao que ele mencionara antes, sobre não
ser preciso falar para que cada um aprecie e compreenda o outro. Deleuze tem
na memória, em particular, os gestos de Foucault, secos, estranhos,
fascinantes, como gestos de metal e madeira.
Finalmente, Deleuze diz que todas as pessoas só tem charme por meio de sua
loucura (folie). O que é charmoso é o lado de uma pessoa que mostra que essa
pessoa pirou um pouco (où ils perdent un peu les pédales). Se você não
consegue apreender o traço de loucura em alguém, você não pode ser seu
amigo. Mas se você apreende aquele pequeno ponto de insanidade, de
"démence", de algu´me, o ponto em que a pessoa está com medo ou mesmo
feliz, aquele ponto de loucura é a própria fonte de seu charme.
No final da letra anterior, F de Fidelidade, Deleuze diz que todas as pessoas só têm charme
por meio de sua loucura (folie). O que é charmoso é o lado de alguém que mostra que está um
pouco pirado (où ils perdent un peu les pédales). Se você não apreender o pequeno traço de
loucura em alguém, você não pode ser seu amigo. Mas se você apreende esse pequeno ponto
de insanidade, "démence", de alguém, o ponto no qual eles estão com medo ou até mesmo
feliz, esse ponto de loucura é a fonte mesma de seu charme. Ele então faz uma pausa, sorri, e
diz: "D'où G" ("O que nos leva ao G")...
G de Gauche-Esquerda ESPAALFABETO
ÇO
Parnet observa que, embora Deleuze venha de uma família burguesa, com
suas inclinações políticas de "direita", ele tem sido, desde a Liberação de 1945,
um "homme de gauche" ("esquerdista"), e ela também observa que enquanto
tantos de seus amigos se juntaram ao Partido Comunista FrancÊs, ele nunca o
fez. Por quê?
Deleuze diz, sim, todos passaram pelo PC, e o que o impediu de fazê-lo foi que
sempre foi tão trabalhador (travailleur) e, além disso, ele simplesmente nunca
foi capaz de agüentar ir a todas aquelas reuniões! Ele lembra a Parnet que era
foi o período do "Appel de Stockholm" (Apelo de Estocolmo) e todos os seus
amigos, pessoas de grande talento, passava todo o seu tempo andando pra lá
e pra cá coletando assinaturas para esse manifesto... Uma geração inteira ficou
presa nisso, diz Deleuze, mas isso colocava um problema para ele. Ele tinha
uma porção de amigos que eram historiadores comunistas, e ele sentia que
teria muito mais importante para o PC se esses amigos gastassem sua energia
em terminar suas dissertações do que em coletar assinaturas. Assim, ele não
tinha qualquer interesse nisso, nem tampouco era ele muito falante, assim toda
essa atividade de assinatura de manifestos deixava-o em um estado de
completo pânico.
Parnet pergunta se Deleuze, não obstante, sentia-se próximo dos
compromissos do Partido, e ele diz, não, que eles nunca lhe preocuparam, que
isso foi uma outra coisa que o salvou de todas essas discussões sobre Stálin, e
sobre a revolução dando errado. Deleuze dá uma gargalhada rouca nesse
momento, diz quem eles estão tentando enganar (de qui on se moque), todos
esses "nouveaux philosophes", que descobriram que a revolução deu errado,
você realmente tem que ser estúpido (débile), uma vez que era evidente com
Stálin. Deleuze persegue essa linha de raciocínio de forma brutal: quem
alguma vez pensou que uma revolução fosse bem, ele pergunta. Quem?
Quem? As pessoas dizem que os ingleses não podiam ter uma revolução, mas
isso é falso: eles a tiveram, eles tiveram Cromwell como resultado, e todo o
Romantismo Inglês, que é uma longa meditação no fracasso da revolução. Eles
não esperaram por André Glucksmann, diz Deleuze, para refletir no fracasso
da revolução. E os americanos nunca são discutidos, eles tiveram sua
revolução, tanto quanto, se não mais, que os bolcheviques. Mesmo antes da
Guerra Revolucionária, eles apresentaram isso como uma nova noção e foram
além dessas noções exatamente como Marx falar mais tarde do proletariado:
eles conduziram um novo povo e tiveram uma verdadeira revolução.
Exatamente da forma como os marxistas descobriram a proletarização
universal, os americanos contaram se apoiaram na imigração universal, os dois
meios de luta de classe. Isso é absolutamente revolucionário, diz Deleuze, é a
América de Jefferson, de Melville, uma América absolutamente revolucionária,
que anunciou um "novo homem" exatamente da mesma forma que a revolução
bolchevique anunciou o "novo homem".
A revolução fracassou, todas as revoluções fracassam, e agora as pessoas
estão pretendendo "redescobrir" isso. Você tem realmente de ser estúpido,
repete Deleuze... Todo mundo está se perdendo nesse atual revisionismo. Há
François Furet que descobriu que a Revolução Francesa não foi tão fabulosa
quanto se pensava, que ela fracassou. Mas todo mundo sabe que a Revolução
Francesa nos deu Napoleão! As pessoas estão fazendo "descobertas" que,
para Deleuze, não são muito comoventes por sua novidade ("on fait des
découvertes qui ne sont pas três émouvantes par leur nouveauté). A Revolução
Britânica desembocou em Cromwell, a Revolução Americana teve resultados
piores, os partidos políticos, Reagan, que não parecem nada melhores.
Deleuze vai adiante nesse raciocínio: as pessoas estão em um estado tal de
confusão sobre o fato de as revoluções fracassarem, darem errado. Entretanto,
isso nunca impediu as pessoas de tornar-se revolucionárias. Deleuze
argumenta que as pessoas estão confundindo duas coisas absolutamente
diferentes: a situação na qual o único resultado para o homem é tornar-se
revolucionário, é a confusão entre tornar-se e história, e se as pessoas tornam-
se revolucionárias, isso é uma confusão de historiador. Os historiadores, diz
Deleuze, falam do futuro da revolução, mas essa não é, de forma alguma, a
questão.
O problema concreto é a forma como e por que as pessoas tornam-se
revolucionárias, e felizmente os historiadores não podem impedi-las de fazê-lo.
É óbvio, diz Deleuze, que os sul-africanos estão envolvidos em um devir-
revolucionário, os palestinos também. Então, Deleuze diz, se alguém diz a eles,
afinal, mesmo que sua revolução tenha sucesso, ela vai dar errado, Deleuze
responde: antes de mais nada, não se tratará dos mesmos tipos de problemas,
mas novas situações existirão, devir-revolucionários serão desencadeados. A
tarefa das pessoas em situações de opressão e tirania, argumenta Deleuze, é
entrar em devir-revolucionários, e quando alguém diz, "oh, não está
funcionando", não estamos falando da mesma coisa, é como se estivéssemos
falando duas linguagens diferentes - o futuro da história e o futuro de devires
não são, de forma alguma, a mesma coisa, conclui ele.
Parnet focaliza uma outra questão atual (em 1988), o respeito pelos "direitos do
homem" (les droits de l'homme), que está tão na moda, mas não é
revolucionário, bem pelo contrário. Deleuze responde suavemente, até mesmo
fatigadamente, que ele pensa que o respeito pelos "direitos do homem"
pertence a esse pensamento fraco (pensée molle) do período intelectual
empobrecido que eles discutiram antes (na letra C de cultura). É puramente
abstrato, diz Deleuze, esse "direitos do homem", puramente abstrato,
completamente vazio. É como o que ele estava tentando dizer sobre o desejo:
o desejo não consiste em erigir um objeto, de dizer o desejo é isso... não
desejamos um objeto, é zero; em vez disso, nos encontramos em situações.
Deleuze pega um exemplo do noticiário, a situação armênia: um enclave em
outra República Soviética Armênia, um primeiro passo; depois, há esse
massacre por algum tipo de grupo turco, de forma que os armênios recuam
para sua república, e bem nesse momento, há um terremoto. Você imagina que
está em algo escrito pelo Marquês de Sade, diz Deleuze, esse pobre povo
nessas circunstâncias horríveis. (Deleuze dá esse exemplo com um conjunto
de situações).
Ele continua dizendo que quando as pessoas dizem "os direitos do homem", é
apenas um discurso intelectual, intelectuais odiosos, por sinal, que não têm
idéia nenhuma. Deleuze insiste em dizer que essas declarações não são nunca
feitas em função das pessoas que estão diretamente envolvidas, os armênios,
por exemplo. Seu problema não é os "direitos do homem". Isso é o que
Deleuze chama de um "agenciamento" (agencement): o que se deve fazer para
suprimir esse enclave ou para fazer com que se torne possível que esse
enclave sobreviva? É uma questão de território, não de "direitos do homem",
não uma questão de justiça, mas uma questão de jurisprudência.
Todas as abominações que os humanos sofrem, diz Deleuze, são casos não
elementos de lei abstrata. Esses são casos abomináveis, exatamente da
mesma forma que o problema armênio é um problema extremamente complexo
de jurisprudência, salvar os armênios ou ajudá-los a que eles se salvem. Então,
um terremoto ocorre para confundir tudo. Agir pela liberdade, devir
revolucionário, é operar em jurisprudência quando nos voltamos para o sistema
de justiça. Assim, não é uma questão de aplicar os "direitos do homem", mas,
antes de inventar formas de jurisprudência, de forma que, para cada caso, isso
não seja mais possível.
Deleuze dá um exemplo para ajudar a explicar o que é jurisprudência: ele se
lembra de quando fumar em táxis era proibido. No começo, alguns se
recusaram a obedecer a lei, e toda a questão tornou-se bastante pública por
causa dos fumantes. Em uma nota paralela, Deleuze menciona que se ele não
tivesse estudado filosofia, ele teria estudado Direito, mas não os "direitos do
homem". Antes, ele teria estudado jurisprudência, sua vida; não existem
quaisquer "direitos do homem", diz Deleuze, apenas direitos da vida, caso por
caso. Ele retorna ao exemplo do táxi: um dia, um cara não quer parar de fumar,
assim ele processa o taxista, o taxista perde o caso com o argumento de que
quando alguém pega um táxi, ele o está alugando, e o locatário tem o direito de
fumar no lugar em que ele alugou. O táxi é então comparado a um apartamento
móvel, e o cliente a um locatário. Dez anos mais tarde, o táxi não é mais visto
dessa maneira, é visto, em vez disso, como uma forma e serviço público, e
ninguém tem mais o direito de fumar dentro dele.
Assim, trata-se de uma questão de situações que evoluem, e a luta pela
liberdade consiste em envolver-se na jurisprudência. Na Armênia, quais são os
"direitos do homem"? Os turcos não têm o direito de massacrar os armênios:
aonde isso nos leva? São os estúpidos ou hipócritas realmente, Deleuze
argumenta, que têm essa ideia dos "direitos do homem". A criação de direitos é
a criação de jurisprudência e da luta por eles. É nisso em que consiste a
esquerda, em criar direitos.
[Aqui Charles Stivale insere um link
que remete para uma lista de discussão na
qual um participante, Bram Dov Abramson, transcreveu, em francês, e traduziu,
para o inglês, integralmente essa parte da intervenção de Deleuze sobre os
"direitos do homem].
Parnet afirma que essa demanda pelos "direitos do homem" é como uma
negação do maio de 68 e também uma negação do marxismo. Entretanto,
Deleuze nunca foi um comunista, e contudo ele faz uso de Marx, que continua
a ser uma referência para ele. E Deleuze, diz Parnet, é uma das poucas
pessoas que não disse que maio de 68 foi nada, uma brincadeira de escolares;
e todo mundo muda. Ele pede a ele para falar um pouco sobre maio de 68.
Deleuze a desaprova, diz que ela é demasiado dura, ele não é uma das poucas
pessoas, há muitas pessoas que pensam bem de maio de 68. Parnet
contrapõe que essas pessoas são seus amigos. Deleuze diz, mesmo assim,
muitas pessoas não renegaram ou abjuraram maio de 68.
Para Deleuze, maio de 68 foi uma coisa simples: tratou-se de uma intrusão do
real. As pessoas quiseram vê-lo como o reino do imaginário, mas foi realmente,
diz Deleuze, um sopro do real em seu estado puro (une bouffée du réel dans
l'état pur). É o real, ele repete, e as pessoas compreendem que foi prodigioso!
As pessoas na realidade é isso que é o devir. Pode haver devires ruins, e é
quase obrigatório que os historiadores não tenham entendido isso, Deleuze
crê, porque nesses momentos, a diferença entre história e devires revela-se, e
maio de 68 foi um devir-revolucionário sem um futuro revolucionário. As
pessoas podem sempre zombar dele pós-fato, mas os devires tomaram conta
das pessoas, até mesmo devir-animal, até mesmo devir-criança, devir-mulher
para os homens, devir-homem para as mulheres. Todos esses aspectos estão
nesse domínio muito especial que Deleuze e Parnet vem distilando desde o
início das questões feitas por ela.
Parnet pergunta a Deleuze se ele próprio teve o seu devir-revolucionário
naquele momento, e ele diz que o sorriso dela indica a ele que a pergunta não
está isenta de zombaria. Assim, ela refaz a questão: entre o cinismo de
Deleuze como um homme de gauche e seu devir-revolucionário como um
esquerdista, como ele desenleia, como ele explica todo aquele se débrouiller
[se virar], e que significa para Deleuze, ser "de gauche", de esquerda? Deleuze
faz uma pausa antes de responder. Então, ele diz que ele não acredita que
exista um governo de esquerda, o que é surpreendente. O melhor que se pode
esperar, ele acredita, é um governo favorável a certas demandas da esquerda.
Mas não existe um governo de esquerda uma vez que estar na esquerda não
tem nada a ver com governos ("n'est pas une affaire de gouvernement").
Assim, como definir "estar na esquerda"?, ele continua. De duas formas:
primeiro, é uma questão de percepção, que significa isso: o que não estar na
esquerda significa? É como um endereço, saindo para fora de uma pessoa: a
rua em que você está, a cidade, o país, outros países distantes e ainda mais
distantes [Deleuze faz um gesto indicando distância]. Isso tem seu ponto de
partida no eu, e na medida em que se é privilegiado, que se vive um país rico,
pode-se perguntar, o que podemos fazer para que essa situação dure? Sente-
se que existe perigo, que pode não durar, é tudo tão louco, assim o que se
pode fazer para que a Europa dure? Estar na esquerda é o oposto: é
perceber... E as pessoas dizem, os japoneses percebem assim, não como
nós... eles percebem primeiro a periferia [Deleuze faz um gesto de fora para
dentro], eles diriam o mundo, o continente - digamos, a Europa -, a França,
etc., rua Bizerte, eu: é um fenômeno de percepção, perceber o horizonte,
perceber no horizonte.
Parnet, compreensivelmente, objeta que os japoneses não são realmente tão
esquerdistas, e Deleuze faz um gesto de reprovação, sua objeção não é
adequada (c´est pas une raison), na base de que, na sua percepção, eles são
esquerdistas, na base de seu senso de endereço, de endereço postal.
Primeiro, você vê o horizonte, Deleuze diz. E você sabe que esses milhões de
pessoas famintas não podem durar, ele continua, não tem sentido brincar sobre
isso, é um sistema de justiça absolutamente desgastado, não é uma questão
de moralidade, mas de percepção
natalidade tem que ser reduzida, que é apenas uma outra forma de manter os
privilégios da Europa. "Estar na esquerda" é realmente encontrar
agenciamentos, encontrar agenciamentos de dimensão mundial. Estar na
esquerda é freqüentemente apenas problemas de Terceiro Mundo que estão
mais próximos de nós que problemas em nosso bairro. Assim, estar na
esquerda é realmente uma questão de percepções, diz Deleuze, mais do que
uma questão de "belas almas" [belles âmes]. E, em segundo lugar, ele
continua, estar na esquerda é um problema de devires, de nunca deixar de
devir minoritário. Isto é, a esquerda não é nunca da maioria, e por uma razão
muito simples: a maioria é algo que presume que não é a enorme quantidade
que vota por algo, mas presume um padrão (étalon); no Ocidente, o padrão
que toda maioria presume é: 1) homem, 2) adulto, 3) masculino/viril (male), 4)
habitante da cidade... Ezra Pound, Joyce, digamos, coisas como essas, são o
padrão. Assim, a maioria, por sua natureza, acompanhará seja lá que agregado
de pessoa ou coisa, em um momento particular, vai bem com esse padrão, isto
é, a suposta imagem do urbano, viril, adulto macho, de forma que uma maioria,
Deleuze insiste, não é nunca ninguém, é um padrão vazio. Simplesmente, um
máximo de pessoas se reconhece nesse padrão vazio.
Assim, ele continua, as mulheres deixarão a sua marca seja ao intervir nessa
maioria, seja nas minorias segundo os grupos em que elas são colocadas
segundo esse padrão. Deleuze clarifica isso: ser uma mulher não é um dado da
natureza, as mulheres têm seus próprios devir-mulher; e assim, se as mulheres
têm um devir-mulher, os homens também têm um devir-mulher. Deleuze
lembra a Parnet de haver falado anteriormente sobre devir-animal, sobre as
crianças terem seus próprios devires, de não serem crianças naturalmente.
Parnet pergunta se os homens não podem devir homens, e essa é uma
pergunta difícil! Deleuze diz, não, esse é um padrão majoritário, viril, adulto,
macho... eles podem se tornar mulheres, e então eles entram em práticas
minoritárias. A esquerda, conclui Deleuze, é o agregado de processos de
devires revolucionários. Assim, diz Deleuze, bastante literalmente, a maioria
não é ninguém, a minoria é todo mundo, e é isso o que significa estar na
esquerda: saber que a minoria é todo mundo e é aí que fenômenos de devir
ocorrem. É por isso que não importa quão grandes eles pensem que são, eles
ainda têm dúvidas sobre o resultado de eleições.
INÍCIO
SPAÇOH de História da Filosofia ESPAALFABETO
Parnet lista os primeiros trabalhos de Deleuze, a primeira fase sobre a história
da filosofia - sobre Hume, Nietzsche, Kant, Bergson, Espinosa, e diz, então,
que quando se encontra seus trabalhos posteriores - Diferença e repetição,
Lógica do sentido, e os trabalhos com Guattari - pode-se pensar que ele tem
uma personalidade tipo Jekill/Hyde. Então, ela observa, ele retornou a Leibniz
em 1988, assim ela pergunta: de que ele gostava e ainda gosta na história da
filosofia?
Deleuze faz uma pausa e então diz que se trata de uma questão complicada
porque essa história da filosofia abrange a própria filosofia. Ele supõe que
muitas pessoas pensam na filosofia como algo muito abstrato e sobretudo para
especialistas, mas em sua opinião, não tem nada a ver com especialistas, ou
tem, mas apenas da forma que a música e a pintura têm. Assim, ele indica que
tenta colocar o problema de forma diferent.
Deleuze diz que, convencionalmente, a história da filosofia é abstrata no
segundo grau uma vez que ela não consiste em falar sobre idéias abstratas,
mas em formar idéias sobre idéias abstratas. Mas ele sempre viu isso de forma
diferente, fazendo uma comparação com a pintura. Ele refere-se a cartas
escritas por Van Gogh sobre as distinções entre a pintura de retratos e a
pintura de paisagens [veja Lógica do sentido, XV, para uma discussão mais
extensa da correspondência de Van Gogh]. Para Deleuze, a história da filosofia
é, como na pintura, uma espécie de arte do retrato, criando um retrato do
filósofo, mas um retrato filosófico de um filósofo, um retrato mental ou espiritual
de forma tal que se trata de uma atividade que pertence plenamente à própria
filosofia, assim como um retrato pertence à pintura.
Deleuze pergunta, entretanto, se ele não está indo ligeiro demais com essa
comparação com a pintura, e diz que se ele invoca pintores como Van Gogh ou
Gauguin, é porque algo em suas obras tem um enorme efeito sobre ele, o tipo
de imenso respeito ou, antes, de medo e até mesmo de pânico que eles
provocam quando confrontados com a abordagem da cor. Esses pintores, diz
Deleuze, são os maiores coloristas que já existiram, mas em suas obras, eles
empregam a cor com grande hesitação [tremblement]. No começo de suas
carreiras, eles usavam cores terrosas [couleurs patate, de terre], nada que
chamasse a atenção, porque ele ainda não ousavam assumir a cor. É uma
questão muito comovente, como se, literalmente, eles se julgassem ainda não
dignos da cor, ainda não prontos ou capazes para assumi-la e realmente pintar.
Foram necessários anos e anos antes que eles fossem capazes de fazê-lo.
Quando você vemos os resultados de seu trabalho, diz Deleuze, temos que
refletir sobre essa imensa lentidão para empreender aquele trabalho. A cor,
para um pintor é algo que pode levá-lo à loucura, à insanidade, sendo, assim,
algo bastante difícil, levando anos para que eles ousem chegar perto dela.
Assim, não é que ele seja particularmente modesto, diz Deleuze, mas chama
sua atenção como sendo bastante chocante que haja filósofos que dizem
simplesmente, olha, agora vou para a filosofia, vou fazer minha própria filosofia.
Trata-se de afirmações frágeis, argumenta Deleuze, porque a filosofia é como
pintar com cores, antes de chegar a ela, temos que tomar tantas precauções,
antes de conquistar a "cor filosófica" [la couleuer philosophique] - e a cor
filosófica é o conceito. É necessária uma enorme quantidade de trabalho antes
que se possa ser bem sucedido em inventar conceitos. Deleuze vê a história da
filosofia como esta modéstia vagarosa, gastando um enorme tempo em fazer
retratos. É como um romancista, sugere Deleuze, que pode dizer, estou
escrevendo romances, mas não posso ler nenhum, porque eu correria o risco
de comprometer minha inspiração. Deleuze diz que ele tem ouvido alguns
escritores jovens fazer essa apavorante afirmação, a qual, para ele, significa
que eles simplesmente não precisam trabalhar. Além disso, Deleuze vê a
história da filosofia não apenas como tendo um papel preparatório, mas que ela
é razoavelmente bem sucedida por si mesma. Trata-se de uma arte do retrato
na medida em que permite que se chegue a alguma coisa. Nesse ponto, torna-
se um pouco misterioso, diz Deleuze, e ele pergunta a Parnet se ela pode,
talvez, dar a ele uma outra questão, de forma que ele possa definir isto.
Parnet diz que a utilidade da história da filosofia para Deleuze está clara nessa
explicação. Mas a utilidade da história da filosofia para as pessoas em geral, o
que é isso, ela pergunta, uma vez que Deleuze diz que ele não quer vê-la como
uma espécie de especialização?
Para Deleuze, é muito simples. Pode-se compreender o que é a filosofia, ele
diz - isto é, a extensão na qual é ela não é uma coisa mais abstrata do que
uma pintura ou uma obra musical - apenas por meio da história da filosofia,
desde que se a conceba da maneira adequada [comme il faut]. O que pode
isso ser? Uma coisa é certa: um filósofo não é alguém que contempla ou
mesmo reflete, mas é alguém que cria um tipo muito especial de coisa,
conceitos, não estrelas para as quais se olha no céu. Deleuze argumenta [com
ele e Guattari fazem em O que é filosofia?] que temos que criar conceitos,
fabricar conceitos. Assim, muitas questões surgem aqui: para quê? Por que
criar conceitos, e o que é isso? Deleuze deixa essas questões de lado para dar
um exemplo: sabemos que Platão criou um conceito que não existia antes dele,
que em geral se traduz como "a Idéia". O que ele chama de Idéia é
verdadeiramente um conceito platônico. Concretamente, pergunta Deleuze, de
que se trata? É isso que temos que perguntar. Uma Idéia é uma coisa que não
seria uma outra coisa, isto, seria apenas o que é... Deleuze faz uma para
perguntar: isso é abstrato? Não, ele responde, e dá o exemplo que não se
encontra em Platão: uma mãe não é apenas uma mãe, mas também uma
esposa, uma filha. Imaginemos, continua ele, que uma mãe fosse apenas uma
mãe, por exemplo, a Virgem Maria. Mesmo que isso não exista, uma mãe que
não fosse uma outra coisa seria uma Idéia de mãe, isto é, uma coisa que seria
apenas o que é. Isso, afirma Deleuze, é o que Platão quis dizer quando ele
afirmou que apenas a justiça é justa, que apenas a justiça não é alguma outra
coisa senão justa. Platão não pára aí, mas ele criou um verdadeiro concito da
Idéia de algo como puro.
Deleuze admite que isso ainda continua abstrato, e pergunta por quê. Se
vamos ler Platão, tudo se torna concreto, Deleuze insiste. Platão não criou
esse conceito de Idéia por acaso; ele disse que não importa o que aconteça
nessa situação concreta, não importa o que seja um dado nesse caso, existem
pretendentes, isto é, pessoas que dizem: para esta coisa, eu sou o melhor
exemplo. Platão deu o exemplo de um político com uma definição inicial como
o pastor de homens, o qual cuida das pessoas. Como conseqüência, as
pessoas apareceram para dizer: eu sou o verdadeiro pastor de homens (o
comerciante, o condutor de ovelhas, o médico), isto é, diferentes níveis. Em
outras palavras, há pretendentes, e com isso as coisas começar a ficar um
pouco mais concretas.
Deleuze insiste que um filósofo cria conceitos, isto é, a Idéia, a coisa na medida
em que ela é pura [la chose en tant que pure]. O leitor não compreende
imediatamente de que se trata, ou por que precisaríamos criar um tal conceito.
Se ele ou ela continua a refletir sobre isso, verá a razão: há todo tipo de
pretendentes que se apresentam como reivindicando as coisas. Assim, o
problema, para Platão, não é, de forma alguma: "o que é a Idéia"? Dessa forma
as coisas continuariam abstratas. Em vez disso, trata-se de como selecionar os
pretendentes, como descobrir entre eles qual é genuíno (le bon). É a Idéia, isto
é, a coisa em estado puro, que permitirá essa seleção, que selecionará o
pretendente que se aproxima dela.
Deleuze entende que isso permite que a discussão avance um pouco, uma vez
que todo conceito, por exemplo, a Idéia, refere-se a um problema, neste caso o
problema de como selecionar o pretendente. Se fazemos filosofia
abstratamente, ele insiste, não chegamos sequer a ver o problema, mas se
chegamos a esse problema... Perguntamo-nos por que o problema não é
claramente apresentado pelo filósofo, uma vez que ele certamente existe em
seu trabalho, e Deleuze sustenta que é porque não podemos fazer tudo de
uma vez só. A tarefa do filósofo é já a de expor os conceitos que ele está em
vias de criar, assim ele não pode, além disso, expor os problemas, ou ao
menos podemos descobrir esses problemas apenas por meio dos conceitos
que estão sendo criados. Deleuze insiste: se não tivermos encontrado o
problema ao qual um conceito corresponde, tudo permanece abstrato. Se
tivermos encontrado o problema, tudo se torna concreto. É por isso que em
Platão, há constantemente esses pretendentes, esses rivais.
Deleuze vai adiante para perguntar, por que isso ocorre na cidade grega, e em
Platão? O conceito é a Idéia como meio de selecionar os pretendentes, mas
por que esse conceito e esse problema tomam forma no milieu grego? Porque
trata-se tipicamente de um problema grego, da cidade grega, democrática,
mesmo que Platão não aceite o caráter democrático da cidade. Pois é na
cidade grega que, por exemplo, a magistratura é um objeto de pretensão, pois
alguém pode se candidatar para uma função particular. Em uma formação
imperial, os funcionários são nomeados pelo imperador, enquanto que a cidade
ateniense é uma competição de pretendentes, todo um milieu de problemas
gregos, uma civilização na qual a confrontação de rivais constantemente
aparece: é por isso que eles inventaram a ginástica, os jogos olímpicos, e
também os procedimentos legais. E também na filosofia existem pretendentes,
por exemplo, a luta de Platão contra os sofistas. Ele acreditava que os sofistas
eram pretendentes em relação a algo ao qual eles não tinham direito. O que
definiria o direito ou não de um pretendente?, pergunta Deleuze. Tudo isso é
tão interessante quanto um grande romance ou uma grande pintura, mas em
filosofia, existem dois coisas ao mesmo tempo: a criação de um conceito
sempre ocorre como função de um problema. Se não encontramos o problema,
a filosofia permanece abstrata.
Ele dá outro exemplo: as pessoas em geral não vêem os problemas, eles em
geral permanecem ocultos, mas envolver-se na história da filosofia significa
restaurar esses problemas e, por esse meio, descobrir o que há de inovativo
nesses conceitos. A história da filosofia conecta conceitos como se eles
parecessem óbvios, como se eles não fossem criados, de forma que há uma
tendência a ignorar os problemas.
Deleuze dá um último exemplo: muito mais tarde, Leibniz chegou e inventou
um conceito extraordinário ao qual ele deu o nome de "mônada". Existe sempre
algo um pouco louco em um conceito. A mônada de Leibniz, Deleuze continua,
designa um sujeito, alguém, você ou eu, na medida em que expressa a
totalidade do mundo e ao expressar a totalidade do mundo, expressa
claramente apenas uma pequenina região do mundo, de seu território, ou
aquilo que Leibniz chama de seu "departamento". Assim, uma unidade
subjetiva que expressa o mundo inteiro, mas que expressa apenas uma região
do mundo - é isso que se chama "mônada". É um conceito que Leibniz criou,
mas por que dizê-lo dessa forma? Temos que encontrar o problema, é aí que
está o charme de se ler filosofia, uma coisa tão charmosa quanto ler um bom
livro. Leibniz coloca um problema, especificamente que tudo existe apenas
como dobrado... Ele viu o mundo como um agregado de coisas dobradas umas
sobre as outras. Deleuze sugere aqui voltar um pouquinho atrás: por que ele vê
o mundo dessa forma? O que está acontecendo então? O que conta, Deleuze
argumenta, é a idéia da dobra, tudo é dobrado, e tudo é uma dobra de uma
dobra, não se pode nunca atingir nada que seja completamente sem dobras. A
matéria é constituída de dobras que se rebatem sobre ela, e as coisas da
mente, as percepções, os sentimentos, se dobram sobre a alma. É
precisamente pelo fato de que as percepções, o sentimento, as idéias são
dobradas sobre a alma que Leibniz construiu esse conceito de uma alma que
expressa o mundo inteiro, isto é, no qual ele descobre que o mundo inteiro é
dobrado.
Deleuze pergunta repentinamente, o que é um mau filósofo, ou um grande
filósofo? O mau filósofo, ele responde, não cria conceito nenhum, ele utiliza
idéias prontas, assim ele expressa opiniões, e não faz filosofia, e não coloca
problema nenhum. Assim, fazer história da filosofia é esse longo aprendizado
no qual aprendemos ou no qual somos verdadeiramente um aprendiz nesse
domínio, a constituição de problemas e a criação de conceitos. E de que forma
esse pensamento pode ser estúpido, idiota? Algumas pessoas falam, não
criam conceitos, expressam opiniões, mas, além disso, nós não sabemos de
que problemas elas falam. No máximo, sabemos as questões, mas os
problemas por detrás dessas questões (por exemplo, "Deus existe?" não
coloca problema nenhum, o que poderia estar por detrás...). Se não temos nem
um conceito nem um problema, diz Deleuze, não estamos fazendo filosofia.
Tudo isso para dizer, insiste Deleuze, quanto a filosofia é divertida. Assim,
fazer história da filosofia significa não descobrir nada diferente daquilo que se
descobre quando olhamos para uma pintura ou escutamos uma obra musical.
Parnet pergunta, uma vez que Deleuze evocou o tremor e a hesitação de
Gauguin e de Van Gogh diante da decisão de utilizar a cor, o que aconteceu
com ele, Deleuze, quando ele deixou a história da filosofia para fazer sua
própria filosofia? Deleuze responde rapidamente, foi isso o que aconteceu: a
história da filosofia deu-lhe a oportunidade de aprender coisas, tornou-o mais
capaz de chegar à cor
deixa de existir, por que ainda fazemos filosofia hoje? Porque existe sempre
uma ocasião de criar conceitos. Mas hoje, ele continua, essa noção de criação
de conceitos foi tomada pela mídia, pela publicidade; com os computadores,
eles dizem que podemos criar conceitos, toda uma linguagem roubada da
filosofia, para a "comunicação". Mas aquilo que eles chama de conceitos, de
criar, diz Deleuze como que encerrando a questão, é verdadeiramente cômico,
não há nenhuma necessidade de insistir nisso. Essa ainda continua sendo a
tarefa da filosofia.
Deleuze diz que ele nunca foi afetado por pessoas que proclamam a morte da
filosofia, que falam em ultrapassar (dépasser) a filosofia, etc., uma vez que ele
sempre se perguntou o que querem dizer com essa "morte". Na medida em que
houver a necessidade de criar conceitos, haverá filosofia, uma vez que essa é
a definição de filosofia, nós temos que criá-los, e nós os criamos como uma
função de problemas, e os problemas mudam. Certamente, podemos ser
platônicos, leibnizianos, kantianos, hoje, isto é, julgamos que certos problemas
- não todos - colocados por Platão continuam válidos desque se façamos
certas transformações, e assim somos platônicos uma vez que ainda existe um
uso para conceitos platônicos. Se nós colocamos problemas de natureza
completamente diferente, fazer filosofia é criar novos conceitos como função
dos problemas colocados hoje.
O aspecto final, continua Deleuze, é: o que significa a mudança de problemas?
Podemos dizer: forças históricas, sociais, mas existe algo mais profundo. É
tudo muito misterioso, admite Deleuze, talvez não tenhamos tempo na
entrevista para aprofundar isto, mas Deleuze entende que estamos alcançando
uma espécie de devir do pensamento, uma evolução do pensamento que tem
como resultado não apenas que não estamos mais colocando os mesmos
problemas, mas que eles não são mais colocados da mesma forma. Há um
apelo urgente, uma necessidade mesmo, para se criar e re-criar novos
conceitos. Assim, a história da filosofia não pode ser reduzida a influências
sociológicas, ele argumenta. Há um devir do pensamento, algo muito
misterioso que nos faz talvez não pensar mais da mesma forma que cem anos
atrás, novos processos de pensamento, elipses de pensamento. Deleuze
sustenta que há uma história de puro pensamento, e que é isso que é a história
da filosofia, ela sempre teve apenas uma única função, assim não há
necessidade ir além disso, na medida em que ela tem essa única função.
Parnet pergunta como um problema evolui através do tempo, e Deleuze dá um
outro exemplo: qual era, para a maioria dos grandes filósofos do século XVII,
sua maior preocupação negativa? Era uma questão de afastar os perigos do
erro, isto é, o negativo do pensamento, de impedir que a mente caísse em erro.
Houve um longo, gradual deslizamento no século XVIII, um novo problema
emerge, que não era de forma alguma o mesmo: não mais denunciar o erro,
mas denunciar as ilusões, a idéia de que a mente está não apenas rodeada de
ilusões, mas que ela mesma pode até mesmo produzi-las. Assim, esse é o
movimento no século XVIII, a denúncia das superstições, e embora pareça
semelhante ao século XVII, algo completamente novo está nascendo no século
XVIII. Pode-se dizer que se deve a causas sociais, mas Deleuze sustenta que
há também uma história secreta do pensamento que seria um tema
apaixonante a ser perseguido.
Então, no século XIX - aqui, Deleuze admite que ele está afirmando coisas de
uma forma extremamente simples e rudimentar - as coisas sofreram um
deslizamento. Não se trata mais de como evitar a ilusão; não, como criaturas
espirituais, os homens dizem besteiras (bêtises) sem parar o que não é a
mesma coisa que cair em ilusão: como afastar besteiras? Isso aparece
claramente em pessoas que estão nos limites da filosofia, Flaubert, Baudelaire,
o problema das besteiras. E, então, outra vez, a evolução social, a evolução da
burguesia, fez do problema das "besteiras" um problema urgente. Mas há
também algo mais profundo nesse tipo de história dos problemas que o
pensamento confronta. Toda vez que se coloca um problema, aparecem novos
conceitos, de forma que se compreendemos a história da filosofia desta forma
- criação de conceitos, constituição de problemas, os problemas sendo mais
ou menos escondidos, de forma que temos de descobri-los -, vemos que a
filosofia não tem nada a ver, estritamente, com o verdadeiro ou o falso. Buscar
a verdade não significa nada. Criar conceitos e constituir problemas é uma
questão de sentido, não de verdade ou falsidade... um problema com o sentido,
assim fazer filosofia significa constituir problemas que tenham um sentido e
criar problemas que nos levem a nos mover em direção à compreensão e
solução de problemas.
Parnete volta às duas questões especiais para Deleuze: quando ele voltou a
faze história da filosofia com o livro sobre Leibniz (A dobra), no ano anterior, foi
da mesma forma que 20 anos ants, isto é, antes de ele ter começado a
produzir sua própria filosofia? Deleuze responde que "certamente não". Antes,
ele utilizou a história da filosofia como essa espécie de aprendizagem
indispensável a fim de examinar os conceitos de outros, de grandes filósofos, e
os problemas para os quais seus conceitos forneciam respostas. Enquanto que
no livro sobre Leibniz - e Deleuze diz que não existe nada em vão no que ele
está para dizer -, ele misturou problemas do século XX, que poderiam ser seus
próprios problemas, com os colocados por Leibniz, uma vez que Deleuze está
convencido da atualidade dos grandes filósofos. Assim, o que significa agir
como (faire comme) um grande filósofo o faria? Não significa necessariamente
ser seu discípulo, mas ampliar sua tarefa, criar conceitos em relação com os
conceitos que ele criou e em sintonia com sua evolução. Ao trabalhar sobre
Leibniz, Deleuze estava mais nesse caminho, enquanto que nos primeiros
livros sobre a história da filosofia, ele estava no estágio "pré-cor".
Na continuação, Parnet pergunta sobre seu trabalho sobre Espinosa e
Nietzsche, sobre o qual Deleuze havia dito que ele havia se centrado aí em
uma área um tanto maldita e oculta da filosofia. O que ele quis dizer com isso?
Deleuze diz que, para ele, essa área oculta refere-se a pensadores que
rejeitaram toda transcendência, todos os universais, a noção de que a idéia ou
os conceitos tenham valores universais, qualquer instância que vá além da
terra e dos homens... autores de imanência.
Parnet persegue essa idéia ao observar que seus livros sobre Nietzsche e
Espinosa foram eventos reais, livros pelos quais ele é conhecido, e contudo
não se pode dizer que ele seja um nietzschiano ou um espinosiano. Deleuze
passou por tudo isso, mesmo durante seu aprendizado, e Parnet diz que ele já
era deleuziano. Deleuze parece levemente constrangido, dizendo que ela lhe
fez um grande elogio, se é que isso é verdadeiro. O que ele sempre procurou,
diz ele, fosse seu trabalho bom ou ruim, e ele sabia que podia fracassar, foi
tentar colocar problemas para seus próprios objetivos (pour mon compte), e
criar conceitos para seus próprios objetivos. Deleuze então sugere que, no
caso extremo, ele teria querido uma espécie de quantificação da filosofia, de
forma que a cada filósofo fosse atribuído uma espécie de número mágico que
correspondesse ao número de conceitos que ele realmente criou, referidos a
problemas - Descartes, Leibniz, Hegel. Deleuze acha essa uma idéia
interessane, e pensa que talvez ele tivesse um número mágico pequeno, tendo
criado conceitos em função de problemas. Mas Deleuze conclui dizendo que
sua questão de honra é simplesmente que, qualquer que tenha sido o tipo de
conceito que ele tenha tentado criar, ele pode estabelecer a qual problema
aquele conceito corresponde. Se não fosse assim, tudo teria sido uma
conversa vazia.
A última questão de Parnet sobre este tema: durante o período em volta de
1968, e antes, quando todo mundo estava
envolvido
tinha sido deliberadamente provocativo ao se voltar para Nietzsche, suspeito
de fascismo, e para Espinosa e o corpo, quando todo mundo estava pregando
sobre Reich? Não servia a história da filosofia, para ele, um pouco como uma
ousadia, uma provocação?
Deleuze responde dizendo que isto está ligado ao que eles estiveram o tempo
todo discutindo, a mesma questão. O que ele estava buscando, mesmo com
Guattari, era esse tipo de dimensão verdadeiramente imanente do
inconsciente. A psicanálise está inteiramente plena de elementos
transcendentais - a lei, o pai, a mãe - enquanto que um campo de imanência
que lhe permitiria definir o inconsciente como o domínio no qual Espinosa foi
mais longe, e Nietzsche também, mais longe que qualquer outro antes deles.
Assim não havia qualquer provocação, mas Espinosa e Nietzsche formam na
Filosofia talvez a maior liberação do pensamento, de natureza quase explosiva,
e os conceitos mais incomuns, porque seus problemas eram de alguma forma
problemas condenados, que as pessoas não ousavam colocar durante suas
épocas.
[Deleuze pára, sorrindo para Parnet, e ela responde de forma bastante
estranha, dizendo (quase no tom de um pai ou uma mãe que repreende seu
filho]: "Bem, vamos adiante, já que você não quer responder". Deleuze
simplesmente faz um leve questionament: "eh?", enquanto Parnet anuncia a
próxima letra.
INÍCIO
SPAÇOI de Idéia ESPAALFABETO
Parnet começa dizendo que esta "idéia" não está mais no domínio platônico.
Em vez disso, ela diz, Deleuze sempre falou apaixonadamente sobre idéias de
filósofos, mas também idéias de pensadores no cinema (diretores), idéias de
artistas e de pintores. Ele sempre preferiu uma "idéia" às explicações e ao
comentário. Por que, então, para Deleze, a "idéia" ganha precedência sobre
todo o resto?
Deleuze admite que isso está bastante correto: a "idéia" tal como ele a utiliza
atravessa todas as atividades criativas, uma vez que criar idéias significa ter
uma idéia. Mas há pessoas - que não devem, de forma alguma, ser
desprezadas por causa disso - que passam pela vida sem jamais ter uma
idéia. Deleuze insiste que é, em geral, bastante raro que se tenha uma idéia,
não ocorre todos os dias. E um pintor também pode ter idéias, da mesma forma
que um filósofo, só que não se trata do mesmo tipo de idéias. Assim, pergunta
Deleuze, em que forma uma idéia ocorre em um caso particular? Em filosofia,
ao menos, de duas formas: a idéia ocorre na forma de conceitos e de criação
de conceitos.
Deleuze se impressiona com os diretores de cinema: enquanto uns não têm
qualquer idéia, alguns têm uma boa quantidade, uma vez que as idéias são
bastante assombradoras, elas vão e vêm, e assumem diversas formas.
Deleuze dá um exemplo do diretor de cinema Minelli. Em seus trabalhos,
vemos que ele se pergunta: o que significa ficar preso no sonho de uma outra
pessoa? Isso vai do cômico ao trágico e até mesmo ao abominável. Assim, do
fato se ficar preso no sonho de uma outra pessoa podem resultar coisas
horríveis; trata-se, possivelmente, de horror em seu estado puro. Assim, na
obra de Minelli, podemos ficar presos no pesadelo da guerra, e isso produz o
admirável Quatro cavaleiros do Apocalipse, não a guerra vista como guerra,
mas como pesadelo. O que significaria ficar preso no sonho de uma garota?
Isso dá como resultado comédias musicais, nas quais Fred Astaire e Gene
Kelly - Deleuze indica não estar muito seguro a respeito dos nomes - fogem
de tigresas e de panteras negras. Isso é uma idéia. Deleuze apressa-se em
observar que não se trata de um conceito, entretanto, e Minelli não está
fazendo filosofia, mas cinema.
Deleuze vai adiante, sugerindo que nós quase temos que distinguir três
dimensões, o que constitui seu próximo trabalho [que ele e Guattari
desenvolveram em O que é a Filosofia?]:
1) na primeira, há conceitos que são inventados na filosofia;
2) na segunda, há perceptos no domínio da arte. Um artista cria perceptos,
uma palavra que é necessária para distingui-los de percepções. O que quer um
romancista? Ele quer ser capaz de construir agregados de percepções e
sensações que sobrevivam aqueles que lêem o romance. Deleuze dá
exemplos em Tolstoi e Tchecov, cada qual à sua própria maneira, que foram
capazes de escrever da mesma forma que um pintor faz para pintar. Assim, a
fim de tentar dar a essa complexa rede de sensações uma independência
radical em relação a quem as vive, Tosltoi descreveu atmosferas; Faulkner, e
um outro grande romancista, Thomas Wolfe, que quase afirmou isso em seus
contos: alguém sai de casa de manhã, sente o cheiro de torradas, vê um
pássaro voando, e sente uma complexa rede de sensações.
Assim, o que acontece quando alguém que vive as sensações passa para uma
outra coisa? Isso, diz Deleuze, é um pouco como na arte, onde encontramos
uma resposta. É dar uma duração ou uma eternidade a essa complexa rede de
sensações que não são mais apreendidas como sendo vividas por alguém, ou
que, do lado de fora, podem ser apreendidas como vividas por um personagem
de ficção. O que faz um pintor? Ele dá consistência a perceptos, ele rasga
perceptos a partir da percepção.
Deleuze chama a atenção para os impressionistas que distorceram a
impressão de uma forma radical. Um conceito, diz Deleuze, cria uma rachadura
no crânio (fend le crâne), é um hábito de pensamento que é completamente
novo, e as pessoas não estão acostumadas a pensar desse jeito, não estão
acostumadas a ter seus crânios rachados, uma vez que um conceito torce
nossos nervos. Deleuze cita Cézanne de memória, que diz algo como "nós
temos que tornar o impressionismo durável", isto é, novos métodos são
necessários a fim de fazer com que ele tenha uma duração, de forma que o
percepto adquire uma autonomia ainda maior.
3) Uma terceira ordem de coisas, uma espécie de conexão entre todas elas,
são afetos. Deleuze diz que, obviamente, não existe nenhum percepto sem
afetos, mas que esses são igualmente específicos: esses são devires que
excede quem os vive, que excede a força de quem os vive. Não nos leva a
música a essas forças (puissances) que excedem nossa apreensão? É
possível, Deleuze responde. Se pegamos um conceito filosófico, ele nos faz
"ver" coisas, uma vez que os grandes filósofos têm esse lado "vidente", ao
menos os filósofos que Deleuze admira: Espinosa nos faz "ver", um dos
filósofos "videntes" mais visionários, Nietzsche também. Todos eles lançam
afetos fantásticos, há uma música nesses filósofos, e inversamente, a música
faz com que vejamos algumas coisas estranhas, cores e perceptos. Deleuze
diz que ele imagina uma espécie de circulação, entre elas, dessas dimens~eos,
entre conceitos filosóficos, perceptos pictóricos e afetos musicais. Não há nada
surpreendente no fato de que haja essas ressonâncias, sustenta ele, é só
otrabalho de pessoas bastante diferentes, mas isso nunca pára de se
interpenetrar.
Parnet observa que Deleuze está sempre muito interessado nas idéias dos
pintores, artistas, filósofos, mas ela pergunta por que ele nunca parece
interessado em examinar ou ler algo que seja simplesmente divertido ou algo
meramente diversionista, sem que seja preciso ter uma idéia. Não é uma
possível que haja também aí uma idéia? Deleuze diz que, no sentido em que
ele defini "idéia", ele tem dificuldade em ver como isso seria possível? Se
mostrarmos para ele uma pintura que não tem nenhum percepto ou tocar para
ele alguma música sem afeto, Deleuze diz que ele praticamente não pode
compreender o que isso quer dizer. E um livro idiota de filosofia, ele diz que ele
teria dificuldade em compreende que tipo de prazer ele tiraria disso, além de
um prazer extremamente doentio. Parnet diz que podemos simplesmente pegar
um livro deliberadamente divertido, e Deleuze diz que um livro desses bem
poderia estar cheio de idéias, tudo depende. Ele diz que ninguém o fez rir mais
do que Beckett e Kafka, e que ele se considera uma pessoa sensível ao humor,
mas que é verdade que ele não gosta muito de programas cômicos na
televisão. Parnet diz que a exceção para Deleuze é Benny Hill, e Deleuze diz,
sim, porque ele [Benny Hill] "tem uma idéia", mas mesmo em seu seu campo,
os grandes cômicos americanos (burlesques) têm um monte de idéias.
Parnet pergunta se algum vez ocorre que Deleuze senta em sua escrivaninha
sem ter uma idéia do que ele vai fazer, isto é, sem ter qualquer idéia. Deleuze
diz, obviamente não, se ele não nenhuma idéia, ele não se senta para
escrever. Mas o que acontece é que a idéia não se desenvolveu o suficiente, a
idéia lhe escapa, a idéia desaparece, pode haver buracos. Ele tem essas
experiências dolorosas, ele admite, e não é fácil uma vez que as idéias não
estão prontas, há momentos terríveis, até mesmo desesperadores desse tipo.
Parnet menciona uma expressão: a idéia que faz um buraco que está faltando
(l'idée qui fait un trou qui manque), e Deleuze responde dizendo que é
impossível fazer uma distinção. Tenho uma idéia que eu sou apenas incapaz
de expressar, ou simplesmente não tenho idéia nenhuma? Para Deleuze, é
exatamente a mesma coisa: se ele não pode expressá-la, ele não tem a idéia,
ou está faltando um pedaço, uma vez que as idéias não chegam em um bloco
completamente formado, há coisas que vêm de horizontes variados, e se está
faltando um pedaço, então é inutilizável.
INÍCIO
SPAÇO J de Joie-AlegriaESPAALFABETO
Parnet começa dizendo que este é um conceito ao qual Deleuze está
particularmente ligado uma vez que se trata de um conceio espinosista e
Espinosa transformou a alegria em um conceito de resistência e vida: evitemos
paixões tristes, vivamos com alegria para que possamos estar no máximo de
nossa potência; devemos, pois, fugir da resignação, da má fé, da culpa, dos
efeitos tristes que juízes e psicanalistas exploram. Assim, podemos ver
completamente por que, continua Parnet, Deleuze estaria feliz com tudo isso.
Ela pede a ele que, primeiramente, distinga a alegria da tristeza, tanto para
Espinosa quanto para ele mesmo. O conceito de Espinosa é inteiramente um
conceito de Deleuze, e o que Deleuze descobriu quando ele leu o conceito de
Espinosa?
Deleuze diz, sim, esses textos estão, da forma mais extraordinária, carregados
de afeto. Em Espinosa isso significa - para simplificar - que a alegria é tudo
aquilo que consiste em preencher uma potência. O que é isso? Deleuze sugere
voltar a exemplos anteriores: eu conquisto, por menor que isso possa ser, eu
conquista um pequeno segmento de cor, eu entro um pouco mais na cor; é aí
que a alegria pode ser localizada. A alegria é preencher uma potência, efetuar
uma potência. É a palavra "potência" que é ambígua.
Deleuze pergunta, primeiramente, o que se pode dizer sobre o contrário disso,
sobre o que é a tristeza? Ela ocorre quando somos separados de uma potência
da qual eu acreditava, certa ou erradamente, ser capaz: eu poderia ter feito
isso, mas as circunstâncias não permitiram, ou era proibido, etc. Toda tristeza é
o efeito do poder sobre mim. Tudo isso coloca problemas, obviamente, mais
detalhes são necessários porque não existem potências más; o que é mau é o
grau mais baixo da potência, e isso é poder. Deleuze insiste que a maldade
consiste em impedir alguém de fazer o que ele/ela quer, de efetivar a própria
potência. De forma que não existe potência má, apenas poderes maus...
Talvez todo poder seja mau necessariamente, mas Deleuze sugere que essa
talvez seja uma posição demasiado simplista.
Deleuze vai adiante, sugerindo que a confusão entre potência e poderes tem
bastante custos, porque o poder sempre separa as pessoas que lhe estão
sujeitas daquilo que elas são capazes de fazer. Espinosa partiu desse ponto,
diz Deleuze, e ele volta a algo que Parnet disse ao fazer aquela pergunta, que
a tristeza está ligada aos padres, aos tiranos, aos juízes, e essas são
perpetuamente as pessoas que separam seus sujeitos daquilo que eles são
capazes de fazer, que os proíbem de efetuar suas potências. Deleuze relembra
algo que Parnet disse no verbete "I de Idéia", ao se referir ao anti-semitismo de
Nietzsche. Deleuze vê essa como uma questão importante, uma vez que há
textos de Nietzsche que se pode achar bastante perturbadores se eles são
lidos da maneira antes mencionada, isto é, a de ler os filósofos muito
ligeiramente. O que impressiona Deleuze como curioso é que em todos os
textos nos quais Nietzsche fustiga o povo judeu, o que é que ele reprova neles,
e o que contribuiu para sua fama de anti-semita? Nietzsche reprova-os, sob
condições bem específicas, por terem inventado um personagem que nunca
existiu antes deles, o personagem do padre. Deleuze argumenta que, tanto
quanto ele saiba, em nenhum texto de Nietzsche existe a mínima referência
aos judeus em um ataque generalizado, mas, estritamente, um ataque contra o
povo judeu inventor do padre. Deleuze diz que Nietzsche enfatiza que em
outras formações sociais pode haver feiticeiros, escribas, mas não são a
mesma coisa que os padres.
Deleuze sustenta que uma das fontes da grandeza de Nietzsche como filósofo
é que ele nunca deixa de admirar aquilo que ele ataca, pois ele vê o padre
como uma invenção verdadeiramente incrível, algo muito impressionante. E
isso resulta em uma imediata conexão com os cristãos, mas não o mesmo tipo
de padre. Assim, os cristãos conceberão um outro tipo de padre e continuarão
na mesma trajetória do personagem clerical. Isso mostra, argumenta Deleuze,
a extensão na qual a filosofia é concreta, pois Deleuze insiste que Nietzsche é,
tanto quanto ele saiba, o primeiro filósofo a ter inventado, criado, o conceito do
padre, e desse ponto em diante, de ter colocado problemas fundamentais: em
que consiste um poder sincero, total, etc.; qual é a diferença entre um poder
sincero, total e um poder roial, etc.? Para Deleuze, essas são questões que
continuam completamente atuais. Aqui, Deleuze quer mostrar, como ele
começou a fazer antes, como podemos continuar e ampliar a filosofia. Ele
refere-se à maneira como Foucault, utilizando seus próprios meios, enfatizou o
poder pastoral, um novo conceito que não é o mesmo de Nietzsche, mas que
se liga diretamente com Nietzsche, e dessa forma, desenvolvemos uma história
do pensamento.
Assim, o que é o conceito de padre e como está ligado à tristeza?, pergunta
Deleuze. De acordo com Nietzsche, esse padre é definido como o que inventou
a idéia de que os homens existem em um estado de dívida infinita. Antes do
padre, há a história da dívida, e os etnólogos
fariam bem
Eles fizeram pesquisaram muito isso durante o nosso século, nas assim
chamadas sociedades primitivas, onde as coisas funcionavam por meio de
pedaços de dívida, blocos de dívida finita, eles os recebiam e os davam de
volta, todos ligados ao tempo, pacotes adiados. Esta é uma grande área de
estudo, diz Deleuze, uma vez que sugere que a dívida era fundamental à troca.
Esses são problemas propriamente filosóficos, argumenta Deleuze, mas
Nietzsche falou sobre isso muito antes dos etnólogos. Na medida em que a
dívida existe em um regime finito, o homem pode libertar-se dela. Quando o
padre judeu invoca esta idéia em virtude de uma aliança de dívida infinita entre
o povo judeu e Deus, quando os cristãos adotam isso sob uma outra forma, a
idéia de dívida infinita ligada ao pecado original, isso revela o personagem
muito curioso do padre, sendo responsabilidade da filosofia criar o seu
conceito. Deleuze toma cuidado em dizer que ele não afirma que a filosofia é
necessariamente atéia, mas no caso de Espinosa, ele já tinha esboçado uma
análise do padre judeu, no Tratado teológico-político. Ocorre, diz Deleuze, que
os conceitos filosóficos são verdadeiros personagens que tornam a filosofia
concreta [Deleuze está obviamente desenvolvendo, aqui, o conceito de
"personas conceituais" que ele e Guattari propuseram em O que é filosofia?].
Criar o conceito do padre é como um artista criando uma pintura do padre.
Assim, o conceito de padre buscado por Espinosa, e depois por Nietzsche, e
depois ainda por Foucault, forma uma linhagem fascinante. Deleuze diz que ele
gostaria, ele próprio, de fazer uma conexão com esse conceito, para refletir um
pouco sobre esse poder pastoral, que algumas pessoas dizem que não
funciona mais. Mas, com Deleuze insiste, teríamos que ver como ele foi
utilizado outra vez, por exemplo, pela psicanálise como o novo avatar do poder
pastoral. E como o definimos? Não é a mesma coisa que tiranos e padres, mas
eles ao menos têm em comum que eles derivam seu podeer das paixões tristes
que inspiram nos homens, do tipo: arrependam-se em nome da dívida infinita,
vocês são os objetos de uma dívida infinita, etc. É por meio disso que eles têm
poder, é por meio disso que seu poder é um obstáculo que bloqueia a
efetivação de potências. Embora Deleuze argumente que o poder é triste,
mesmo aqueles que o têm pareçam regojizar-se em tê-lo, mas trata-se de uma
alegria triste.
Por outro lado, Deleuze continua, a alegria é a efetivação de potências. Ele diz
que ele não conhece qualquer potência que seja má. Regozijar-se é alegrar-se
em ser o que se é, isto é, em ter chegado onde se está. Não é auto-satisfação,
não é nenhum gozo de estar satisfeito consigo mesmo. Em vez disso, é o
prazer na conquista, como disse Nietzsche, mas a conquista não é a conquista
de submeter as pessoas, mas a conquista é quando os pintores utilizam e
então conquistam as cores. É isso que é a alegria, mesmo quando dá errado.
Pois, na história das potências e da conquista das potências, ocorre que se
pode efetivar potências demasiadas para o próprio eu, fazendo com que se
entre em surto, como no caso de Van Gogh.
[Mudança de cenário; a entrevista continua no dia seguinte]
Parnet diz que Deleuze tem tido sorte em escapar da dívida infinita. Assim,
como se explica que ele se queixe da manhã à noite, e que ele seja o grande
advogado da queixa e da elegia? Sorrindo enquanto Parnet diz isso, Deleuze
observa que se trata de uma questão pessoal. Ele então diz que a elegia é uma
fonte importante de poesia, uma grande queixa. Dever-se-ia fazer uma história
da elegia, provavelmente já foi feita; a queixa do profeta, ele continua, é o
contrário do padre. O profeta lamenta-se, por que Deus escolheu a mim?, o
que está me acontecendo é demais para mim; se aceitamos que isso seja a
queixa, algo que não vemos todo dia. E não é, ai, ai, ai, estou com dor, embora
também possa ser isso, diz Deleuze, mas a pessoa que está se queixando nem
sempre sabe o que ela quer dizer. A senhora de idade que se queixa sobre seu
reumatismo, o que ela quer dizer é, que força está tomando conta de minha
perna e que é demasiado grande para que eu possa suportar?
Se examinamos a história, diz Deleuze, a elegia é uma fonte de poesia, poetas
latinos como Catulo ou Tibério. E o que é a elegia? É a expressão de quem,
temporariamente ou não, não tem mais um status social. Queixar-se - um
velhinho, alguém na prisão - não é, de forma alguma, a tristeza, mas algo
bastante diferente, a demanda, algo na queixa que é impressionante, uma
adoração, como uma prece. A queixa dos
profetas, ou algo
particularmente interessada, a queixa dos hipocondríacos. A intensidade de
sua queixa é bela, é sublime, diz Deleuze. Assim, ele continua, é o socialmente
excluído que está em uma situação de queixa. Há um especialista húngaro,
Tökei, que estudou a elegia chinesa, que é revigorada por aqueles que não têm
mais um status social, isto é, os escravos libertados. Um escravo, por mais
desafortunado que possa ser, ainda tem um status social. O escravo libertado,
entretanto, está fora de tudo, como na libertação dos negros americanos, com
a abolição da escravidão ou, na Rússia, quando não se previa qualquer
estatuto para os servos libertados. Assim, eles se encontram excluídos de
qualquer comunidade [Deleuze e Guattari referem-se a Tökei neste mesmo
contexto em Mil platôs]. Nasce, então, a grande queixa. Entretanto, a grande
queixa não expressa a dor que eles têm, argumenta Deleuze, mas uma
espécie de canto. É por isso que a queixa é uma grande fonte de poesia.
Deleuze diz [com uma risada de Parnet, como resposta], que se ele não tivesse
sido um filósofo e se ele tivesse sido uma mulher, ele queria ter sido uma
chorona, a queixa surge e é uma arte. E a queixa tem também este lado
perverso, como se dissesse: não assuma minha queixa, não me toque, não
tenha pena de mim, eu estou tomando conta disso. E ao tomar conta disso,
sozinho, a queixa se transforma: o que está acontecendo é demasiadamente
esmagador para mim, porque isto é alegria, alegria em estado puro. Mas
tomamos cuidado em ocultá-la, diz Deleuze, porque há pessoas que não ficam
muito contentes com alguém que esteja alegre, assim, temos que ocultá-la em
alguma forma de queixa. Mas a queixa não é apenas alegria, é também
desconforto, porque, na verdade, efetivar uma potência pode ter um custo: a
gente se pergunta, vou arriscar minha pele? Assim que alguém efetiva uma
potência, por exemplo, um pintor chegando a uma cor, não está arriscando sua
pele? Literalmente, devemos pensar na forma como Van Gogh foi em direção à
cor, depois viveu a alegria, e isso está mais ligado à sua loucura que todas
essas histórias psicanalíticas. Algo arrisca ser quebrado, é demasiadamente
esmagador para mim, é isso que a queixa é, algo demasiadamente grande
para mim, na infelicidade ou na alegria, mas geralmente na infelicidade.
INÍCIO
SPAÇO K de KantESPAALFABETO
Parnet começa afirmando que, de todos os filósofos sobre os quais Deleuze
tem escrito, Kant parece o mais distante de seu próprio pensamento.
Entretanto, Deleuze tem dito que todos os autores que ele estudou têm algo
Espinosa que não seja de todo óbvio?
Deleuze faz uma pausa e então diz que ele preferiria, se ele puder ter essa
ousadia, tratar da primeira parte da questão, isto é, por que ele tratou de Kant,
.............................Assim, pergunta Deleuze, por que ele se fascinou com Kant?
Por duas razões: 1. Kant representou uma grande virada, e 2. Kant foi tão
longe quanto possível, iniciando algo que nunca tinha sido formulado em
filosofia. Especificamente, diz Deleuze, ele erige tribunais, talvez sob a
influência da Revolução Francesa.
Deleuze lembra a Parnet que até agora ele tentou falar sobre os conceitos
como personagens. Assim, antes de Kant, no século XVIII, há um novo tipo de
filósofo apresentado como um investigador (enquêteur), a investigação,
aparecem títulos com "Investigação" sobre isso ou aquilo. O próprio filósofo via-
se como um investigador. Mesmo no século XVII, e Leibniz é o último a
representar essa tendência, ele via-se como umadvogado, defendendo uma
causa, e a maior coisa é que Leibniz tinha a pretensão de ser o advogado de
Deus. Como deve ter havido, na época, coisas em relação às quais Deus podia
ser reprovado, Leibniz escreve um pequeno e maravilhoso trabalho "A causa
de Deus", no sentido jurídico de causa, a causa de Deus a ser defendida. É
como uma seqüência de personagens: o advogado, o investigador, e então,
com Kant, a chegada de um tribunal, um tribunal da razão, coisas sendo
julgadas como função de um tribunal da razão. E as faculdades, no sentido de
compreensão - a imaginação, o conhecimento, a moralidade - são medidas
em função do tribunal da razão. Obviamente, ele utiliza um certo método que
ele inventou, um método prodigioso chamado o método crítico, o método
propriamente kantiano.
Deleuze admite que ele acha todo esse lado de Kant bastante horrível, mas é
tanto fascinação quanto horror, porque é tão engenhoso. E ao interagir com os
conceitos que Kant inventou, Deleuze considera o conceito do tribunal da razão
como inseparável do método crítico. Mas, em última instância, diz Deleuze,
trata-se de um tribunal de julgamento, o sistema de julgamento, apenas que
não se precisa mais de Deus, que se baseia agora na razão, não mais em
Deus.
Em uma observação lateral, Deleuze diz que se poderia ficar curioso sobre
algo que ele acha misterioso - por que alguém, você ou eu, acaba se
conectando ou se relacionando especialmente com uma espécie de problema e
não com outro? Em que consiste a afinidade de alguém por um tipo particular
de problema? É possível que estejamos destinados a um certo problema uma
vez que nós não simplesmente não pegamos qualquer problema. E isso é
verdadeiro, sente Deleuze, para os pesquisadores nas ciências, uma afinidade
por um problema particular. E a filosofia é um agregado de problemas, com sua
própria consistência, mas, felizmente, ela não tem a pretensão de lidar com
todos os problemas, recita Deleuze. Bem, ele se sente de alguma forma ligado
a problemas que tenham como objetivo buscar os meios para se livrar do
sistema de juízes, e substituí-lo por alguma outra coisa. Trata-se um grande
"não"... Deleuze pensa sobre o que Parnet havia dito anteriormente e diz, de
fato, Kant é um outro acréscimo. Deleuze vê Espinosa, vê Nietzsche, na
literatura, D. H. Lawrence e, finalmente, o mais recente e um dos maiores
escritores, Artaud, seu "Pour en finir avec le jugement de dieu", que tem
sentido, não são as palavras de um louco, temos que tomar isso de forma
literal, argumenta Deleuze. [Ver "Para dar um
fim ao juízo",
Crítica e clínica, Rio, Editora 34, pp. 143-153].
E por baixo, quando Deleuze diz que temos que olhar por baixo dos conceitos,
há algumas afirmações de Kant que são surpreendentes, maravilhosas.
Deleuze diz que ele foi o primeiro a ter criado a surpreendente inversão de
conceitos, e é por isso que Deleuze fica tão triste quando se ensina as
pessoas, até mesmo os jovens que estão preparando seu baccalaureate, de
uma forma abstrata, sem nem mesmo tentar fazê-las participar de problemas
que são problemas bem fantásticos. Deleuze insiste na afirmação de que, até
Kant, por exemplo, o tempo era derivado do movimento, era secundário em
relação ao movimento, era tido como um número ou uma medida do
movimento. O que faz Kant? Em umparênteses, Deleuze lembra a Parnet que
tudo o que ele está fazendo aqui é constantemente considerar o que significa
criar um conceito. Continuando, ele diz que Kant cria um conceito porque ele
inverte a subordinação, de forma que com ele, o movimento depende do
tempo. E repentinamente, o tempo muda sua natureza, deixa de ser circular.
Antes, o tempo era subordinado ao movimento, no qual o movimento era o
grande movimento periódico dos corpos celestiais, de forma que ele é circular.
Ao contrário, quando o tempo se liberta do movimento e o movimento passa a
depender do tempo, o tempo torna-se uma linha reta. Deleuze lembra algo que
Borges disse - embora ele tenha pouca relação com Kant -, que uma labirinto
mais assustador que um labirinto circular é um labirinto em linha reta,
maravilhoso, mas foi Kant que libertou o tempo.
E essa estória do tribunal, sustenta Deleuze, medindo o papel de cada
faculdade como uma função de um objetivo particular, é com isso que Kant
colide no final de sua vida, na medida em que ele é um dos raros filósofos a
escrever um livro como um velho que renovaria tudo, a Crítica do Juízo. Ele
chega à idéa de que as faculdades têm que ter relações desordenadas entre si,
que elas colidem entre si, e então reconcilia, mas não mais sujeito a um
tribunal. Ele introduz essa concepção do "Sublime", na qual as faculdades
entram em conflitos, de forma que haveria acordos discordantes. O labirinto e
sua inversão das relações agradam-no muitíssimo, diz ele: toda a filosofia
moderna sai desse ponto, o tempo e sua inversão em relação ao movimento, e
a concepção kantiana de Sublime, com os acordos discordantes. Deleuze é
imensamente tocado por essas coisas. Kant é claramente um grande filósofo,
sustenta Deleuze, e há toda uma sustentação em seus trabalhos que faz
Deleuze se entusiasmar muito. E tudo que está construído em cima disso não
tem nenhum interesse para ele, mas ele diz que não julga isso, simplesmente
trata-se de um sistema do qual ele gostaria de se ver livre, mas sem nenhum
julgamento de sua parte.
Parnet tenta perguntar a Deleuze (enquanto a fita acaba) sobre a vida de Kant,
e Deleuze exclama: "nós não discutimos isto antecipadamente!". Assim, Parnet
faz uma outra pergunta: existe um aspecto no trabalho de Kant que também
pode agradar muito a Deleuze, o aspecto que Thomas de Quincey discutiu [em
The Last Days of Immanuel Kant], essa vida fantasticamente regulada, cheia
de hábitos, sua caminhada diária, a imagem quase mística de um filósofo.
Parnet diz que essa imagem também se aplica a Deleuze, isto é, algo bastante
regulado, com um enorme número de hábitos...
Deleuze sorri outra vez, diz que ele percebe o que ela quer dizer, e o texto de
De Quincey é um texto que ele acha interessantíssimo, um verdadeira obra de
arte. Mas ele vê esse aspecto como pertencendo a todos os filósofos, não os
mesmos hábitos, mas dizer que eles são criaturas de hábitos parece sugerir
que eles não têm qualquer familiaridade com... [Deleuze não completa o
pensamento]. Sendo criaturas de hábito é quase algo que se exige deles...
Espinosa também... Deleuze diz que sua impressão de Espinosa é que não
existe muita coisa de surpreendente em sua vida, ele polia lentes, recebia
visitas, não era uma vida muito agitada, exceto por algumas perturbações
políticas da época. Kant também viveu algumas em meio a algumas
perturbações políticas muito intensas. Assim, tudo o que as pessoas dizem
sobre os aparatos de vestir de Kant (os aparatos para puxar suas meias, etc.),
Deleuze vê como uma espécie de charme, na medida em que se precisa desse
tipo de coisa. Mas, é um pouco como Nietzsche disse, os filósofos são em
geral castos, pobres, e Nietzsche acrescenta, que uso faz o filósofo disso tudo,
dessa castidade, dessa pobreza, etc.? Kant tinha sua pequena caminhada,
mas isso não é nada em si, é o que Deleuze sente: o que acontecia durante
sua pequena caminhada, para que ele estava olhando? No longo prazo, diz
Deleuze, o fato de que os filósofos sejam criaturas de hábito corresponde a
uma espécie de contemplação, contemplar algo. Quanto aos seus próprios
hábitos, sim, ele tem uns tantos, mas são uma espécie de contemplação, e de
coisas que só ele vê.
INÍCIO
SPAÇOL de Literatura ESPAALFABETO
Parnet inicia observando que a literatura e a filosofia constituem a vida de
Deleuze, que ele lê e relê a "grande literatura", e trata os escritores da grande
literatura como pensadores. Entre seus livros sobre Kant e Nietzsche, ele
escreveu Proust e os signos e subseqüentemente publicou três versões
aumentadas do livro. Ele escreveu sobre Carrol e Zola em Lógica do sentido,
sobre Masoch, Kafka, sobre as literaturas ingelsa e americana. Tem-se a
impressão, diz ela, de que é mais por meio da literatura que por meio da
história do pensamento que ele inaugura um novo tipo de pensamento. Assim,
pergunta ela, Deleuze foi sempre um leitor?
Deleuze diz, sim, embora em determinado momento ele tivesse sido muito
mais um leitor ativo de filosofia uma vez que isso era parte de seu aprendizado,
e ele não tinha tempo para romances. Mas ao longo de sua vida, ele leu, e
mais e mais. Ele mesmo pergunta: ele faz uso disso para a filosofia? Sim,
certamente, por exemplo, ele indica que ele deve muito a Fitzgerald, e a
Faulkner também, e embora em geral não considerado um escritor filosófico.
[Deleuze indica aqui que ele não lembra quais escritores são importantes para
ele.]
Deleuze continua, dizendo que sua leitura literária pode ser explicada em
função do que eles discutiram antes, a história do conceito nunca está sozinha:
ao mesmo tempo que persegue sua tarefa, ele nos faz ver coisas, isto é, há
uma interconexão entre perceptos. Sempre que encontramos perceptos em um
romance, há uma comunicação perpétua entre conceitos e perceptos. Há
também problemas estilísticos que são os mesmos em filosofia e literatura.
Deleuze sugere colocar a questão em termos bastante simples: os grandes
personagens literários são grandes pensadores. Ele relê muito Melville, e acha
que o Capitão Ahab é um grande pensador, Bartleby também, à sua própria
maneira. Eles o fazem pensar de uma forma que uma obra literária traça uma
trilha de conceitos intermitentes (en pointillé) da mesma forma que o faz com
perceptos. De forma bastante simples, argumenta ele, não é a tarefa do
escritor literário, que não pode fazer tudo ao mesmo tempo, ele/ela está preso
nos problemas de perceptos e de criar visões (faire voir), causando percepções
(faire percevoir), e criando personagens, uma tarefa assustadora. E um filósofo
cria conceitos, mas ocorre que eles se comunicam muito, uma vez que, sob
certos aspectos, o conceito é um personagem, e o personagem assume
dimensões do conceito.
O que Deleuze encontra de comum entre a "grande literatura" e a "grande
filosofia" é que ambas testemunham em favor da vida, aquilo que ele chamou
de "força" anteriormente testemunha em favor da vida. É por isso que grandes
autores nem sempre tem boa saúde. Algumas vezes, há casos como o de
Victor Hugo, em que eles têm boa saude, assim não se deve dizer que nenhum
escritor goza de boa saúde uma vez que muitos gozam. Mas por que, pergunta
Deleuze, há tantos escritores literários que não gozam de boa saúde? É porque
ele/ela vive um torrente de vida (flot de vie), seja a saúde fraca de Espinosa ou
de Lawrence. Isso corresponde ao que Deleuze disse anteriormente sobre a
queixa: esses escritores viram algo demasiado grande para eles, eles são
visionários, incapazes de lidar com isso, então isso os arrasa. Por que Checkov
se torna tão arrasado? Ele "viu" algo. Os filósofos e os escritores literários
estão na mesma situação, argumenta Deleuze. Há coisas que conseguimos ver
e, de alguma forma, nunca nos recuperamos, nunca retornamos. Isso ocorre
freqüentemente com autores, mas em geral, trata-se de perceptos à beira de
serem inapreensíveis, de serem pensáveis. Assim, entre a criação de um
grande personagem e um grande conceito, existem tantas ligações que
podemos considerá-los como constituindo, de alguma forma, o mesmo
empreendimento.
Parnet pergunta se Deleuze se considera um escritor de filosofia, como se diria
de um escritor no sentido literário. Deleuze responde que ele não sabe se ele é
um escritor de filosofia, mas que ele sabe que todo grande filósofo é um grande
escritor. Parnet observa que parece haver uma nostalgia por criar uma obra de
ficção quando se é um grande filósofo, mas Deleuze diz, não, que isso nem
sequer surge como questão, que é como se perguntássemos a um pintor por
que ele não faz música. Deleuze admite que se pode pensar em um filósofo
que tivesse escrito novelas, é óbvio, por que não? Deleuze diz que ele não
acha que Sartre tenha sido um romancista, embora ele tivesse tentado sê-lo e,
em geral, Deleuze realmente não vê grandes filósofos que tivessem sido
também importante romancistas. Mas por outro lado, Deleuze sente que os
filósofos criaram personagens, notavel e eminentemente Platão, e certamente
Nietzsche, com Zaratustra. Assim, essas são intersecções que são discutidas
constantemente, e Deleuze considera a criação de Zaratustra um grande êxito,
política e literariamente, assim o foram os personagens de Platão. Esses são
momentos sobre os quais não se pode estar completamente seguro se se trata
de conceitos ou de personagens, e são talvez os mais momentos mais belos.
Parnet refere-se ao amor de Deleuze por autores literários secundários, como
Villiers de l'Isle-Adam, Restif de
cultivou essa afeição. Aqui, Deleuze cobre seu rosto com uma mão enquanto
responde que acha verdadeiramente estranho ouvir Villiers ser mencionado
como autor secundário [Deleuze dá uma risada]. Se você considera esta
questão... [ele faz uma pausa, balançando os ombros]. Ele diz que há algo
realmente vergonhoso, totalmente vergonhoso... Ele lembra que quando ele
era muito jovem, ele gostava da idéia de ler o trabalho de um autor em sua
totalidade, as obras completas. Como conseqüência, ele tinha grande afeição
não por autores secundários, embora sua afeição às vezes coincidisse com
eles, mas por autores que tinham escrito pouco. Algumas obras eram enormes,
avassaladoras para le, como a de Victor Hugo, de forma que Deleuze estava
prestes a dizer que Hugo não era um escritor muito bom. Por outro lado,
Deleuze conhecia as obras de Paul-Louis Courrier quase de cor, muito
profundamente. Assim, Deleuze admite ter uma queda pelos assim chamados
autores secundários, embora Villiers não seja um autor secundário. Joubert era
também um autor que ele conhecia profundamente, e uma razão pela qual ele
conhecia esses autores era por uma razão bastante vergonhosa, ele admite:
dava-lhe um certo prestígio estar familiarizado com autores que eram pouco
conhecidos... Mas era uma espécie de mania, conclui Deleuze, e custou-lhe um
certo tempo aprender quão grande era Victor Hugo, e o tamanho de sua obra
não constituía nenhuma medida.
Deleuze continua de seu jeito, concordando que nas assim chamadas
literaturas secundárias... Ele insiste no fato de que a literatura russa, por
exemplo, não está limitada a Dostoieveski e a Tolstoi, mas não se pode chamar
[Nikolai] Leskov de secundário na medida em que há tanta coisa de admirável
que tem pouco a dizer sobre isso, sobre autores secundários, mas sobre o que
ele está feliz é em ter tentado encontrar em qualquer autor desconhecido algo
que poderia lhe mostrar um conceito ou um personagem extraordinário. Mas,
sim, diz Deleuze, ele não se envolveu em nenhuma pesquisa sistemática
[nesse domínio].
Parnet persegue essa questão, ao se referir outra vez ao trabalho de Deleuze
sobre Proust como o único trabalho considerável que ele jamais dedicou a um
único autor, embora a literatura seja uma grande referência em sua filosofia.
Assim, ele pergunta sobre o fato de ele nunca ter devotada um livro inteiro à
literatura, um livro de pensamento sobre a literatura. Deleuze diz que ele
simplesmente não teve tempo, mas que ele planeja fazê-lo. Parnet diz que isso
o tem assombrado e ele responde que ele planeja fazê-lo porque ele o quer.
Parnet pergunta se será um livro de crítica, e Deleuze diz que em vez disso,
será sobre o problema do que, para ele,
significa escrever
que Parnet está familiarizada com todo o seu programa de pesquisa, assim ele
verá se tem tempo.
A última questão na letra L refere-se ao fato de que embora Deleuze leia
muitos e grandes (canônicos) autores, tem-se a impressão de que ele lê muitos
autores contemporâneos. Deleuze diz que compreende o que ela quer dizer, e
pode responder rapidamente: não é que não goste de lê-los, é que a literatura
é uma atividade verdadeiramente especializada na qual se tem de ter uma
formação, algo difícil na produção contemporânea. É uma questão de gosto,
exatamente da forma como as pessoas encontram novos pintores; tem-se que
aprender como [pintar]. Deleuze diz que ele admira muito pessoas que vão às
galerias e sentem que existe alguém que é verdadeiramente um pintor, mas ele
não pode fazer isso e ele explica por que: custou-lhe cinco anos, ele diz, para
entender - não Beckett, que aconteceu imediatamente - mas que tipo de
inovação a escrita de Robbe-Grillet representou. Deleuze afirma ter sido uma
das coisas mais estúpidas quando falou sobre Robbe-Grillet no início. Deleuze
não se considera um descobridor nessa área, enquanto que em filosofia, ele se
sente mais confiante porque ele é sensível a um novo tom e, por outro lado,
àquilo que é completamente nulo ou redundante. No domínio do romance,
Deleuze diz que é bastante sensível, o suficiente para saber o que já foi dito e
que não tem interesse algum. Ele fez, de fato, uma descoberta, do seu próprio
jeito, alguém que ele julgava ser um grande romancista, Armand Farachi. [Em
"Introdução: Rizoma",
Farachi, La dislocation, com um exemplo, entre vários outros, de um modelo de
escrita nomádica e rizomática].
Assim, a questão que Parnet levanta, diz Deleuze, é bastante razoável, mas
ele argumenta que não se deve crer que, sem experiência, se pode julgar o
que está sendo criado. O que Deleuze prefere e o que lhe traz grande alegria é
quando algo que ele mesmo está criando tem um eco em um jovem pintor ou
no trabalho de um jovem escritor. Dessa forma, Deleuze sente que ele pode ter
um tipo de encontro com o que está acontecendo atualmente, com outro modo
de criação. Deleuze diz que sua insuficiência quanto a julgamentos é
compensada por esses encontros com pessoas que estão em ressonância com
o que ele está fazendo, e vice-versa.
Parnet diz que a pintura e o cinema, por exemplo, são favoráveis a esses
encontros, uma vez que ele vai a galerias e a cinemas, mas que ela tem
dificuldade em imaginá-lo vagando em uma livraria e examinando livros que
saíram nos últimos meses. Deleuze diz que ela está certa, mas que isso está
ligado á idéia de que a literatura não muito forte neste momento, uma idéia que
é uma idéia preconcebida em sua mente, que a literatura está tão corrompida
pelo sistema de distribuição, de prêmios literários, que nem vale mesmo a
pena.
L de Literatura
Parnet inicia observando que a literatura e a filosofia constituem a vida de
Deleuze, que ele lê e relê a "grande literatura", e trata os escritores da grande
literatura como pensadores. Entre seus livros sobre Kant e Nietzsche, ele
escreveu Proust e os signos e subseqüentemente publicou três versões
aumentadas do livro. Ele escreveu sobre Carrol e Zola em Lógica do sentido,
sobre Masoch, Kafka, sobre as literaturas ingelsa e americana. Tem-se a
impressão, diz ela, de que é mais por meio da literatura que por meio da
história do pensamento que ele inaugura um novo tipo de pensamento. Assim,
pergunta ela, Deleuze foi sempre um leitor?
Deleuze diz, sim, embora em determinado momento ele tivesse sido muito
mais um leitor ativo de filosofia uma vez que isso era parte de seu aprendizado,
e ele não tinha tempo para romances. Mas ao longo de sua vida, ele leu, e
mais e mais. Ele mesmo pergunta: ele faz uso disso para a filosofia? Sim,
certamente, por exemplo, ele indica que ele deve muito a Fitzgerald, e a
Faulkner também, e embora em geral não considerado um escritor filosófico.
[Deleuze indica aqui que ele não lembra quais escritores são importantes para
ele.]
Deleuze continua, dizendo que sua leitura literária pode ser explicada em
função do que eles discutiram antes, a história do conceito nunca está sozinha:
ao mesmo tempo que persegue sua tarefa, ele nos faz ver coisas, isto é, há
uma interconexão entre perceptos. Sempre que encontramos perceptos em um
romance, há uma comunicação perpétua entre conceitos e perceptos. Há
também problemas estilísticos que são os mesmos em filosofia e literatura.
Deleuze sugere colocar a questão em termos bastante simples: os grandes
personagens literários são grandes pensadores. Ele relê muito Melville, e acha
que o Capitão Ahab é um grande pensador, Bartleby também, à sua própria
maneira. Eles o fazem pensar de uma forma que uma obra literária traça uma
trilha de conceitos intermitentes (en pointillé) da mesma forma que o faz com
perceptos. De forma bastante simples, argumenta ele, não é a tarefa do
escritor literário, que não pode fazer tudo ao mesmo tempo, ele/ela está preso
nos problemas de perceptos e de criar visões (faire voir), causando percepções
(faire percevoir), e criando personagens, uma tarefa assustadora. E um filósofo
cria conceitos, mas ocorre que eles se comunicam muito, uma vez que, sob
certos aspectos, o conceito é um personagem, e o personagem assume
dimensões do conceito.
O que Deleuze encontra de comum entre a "grande literatura" e a "grande
filosofia" é que ambas testemunham em favor da vida, aquilo que ele chamou
de "força" anteriormente testemunha em favor da vida. É por isso que grandes
autores nem sempre tem boa saúde. Algumas vezes, há casos como o de
Victor Hugo, em que eles têm boa saude, assim não se deve dizer que nenhum
escritor goza de boa saúde uma vez que muitos gozam. Mas por que, pergunta
Deleuze, há tantos escritores literários que não gozam de boa saúde? É porque
ele/ela vive um torrente de vida (flot de vie), seja a saúde fraca de Espinosa ou
de Lawrence. Isso corresponde ao que Deleuze disse anteriormente sobre a
queixa: esses escritores viram algo demasiado grande para eles, eles são
visionários, incapazes de lidar com isso, então isso os arrasa. Por que Checkov
se torna tão arrasado? Ele "viu" algo. Os filósofos e os escritores literários
estão na mesma situação, argumenta Deleuze. Há coisas que conseguimos ver
e, de alguma forma, nunca nos recuperamos, nunca retornamos. Isso ocorre
freqüentemente com autores, mas em geral, trata-se de perceptos à beira de
serem inapreensíveis, de serem pensáveis. Assim, entre a criação de um
grande personagem e um grande conceito, existem tantas ligações que
podemos considerá-los como constituindo, de alguma forma, o mesmo
empreendimento.
Parnet pergunta se Deleuze se considera um escritor de filosofia, como se diria
de um escritor no sentido literário. Deleuze responde que ele não sabe se ele é
um escritor de filosofia, mas que ele sabe que todo grande filósofo é um grande
escritor. Parnet observa que parece haver uma nostalgia por criar uma obra de
ficção quando se é um grande filósofo, mas Deleuze diz, não, que isso nem
sequer surge como questão, que é como se perguntássemos a um pintor por
que ele não faz música. Deleuze admite que se pode pensar em um filósofo
que tivesse escrito novelas, é óbvio, por que não? Deleuze diz que ele não
acha que Sartre tenha sido um romancista, embora ele tivesse tentado sê-lo e,
em geral, Deleuze realmente não vê grandes filósofos que tivessem sido
também importante romancistas. Mas por outro lado, Deleuze sente que os
filósofos criaram personagens, notavel e eminentemente Platão, e certamente
Nietzsche, com Zaratustra. Assim, essas são intersecções que são discutidas
constantemente, e Deleuze considera a criação de Zaratustra um grande êxito,
política e literariamente, assim o foram os personagens de Platão. Esses são
momentos sobre os quais não se pode estar completamente seguro se se trata
de conceitos ou de personagens, e são talvez os mais momentos mais belos.
Parnet refere-se ao amor de Deleuze por autores literários secundários, como
Villiers de l'Isle-Adam, Restif de
cultivou essa afeição. Aqui, Deleuze cobre seu rosto com uma mão enquanto
responde que acha verdadeiramente estranho ouvir Villiers ser mencionado
como autor secundário [Deleuze dá uma risada]. Se você considera esta
questão... [ele faz uma pausa, balançando os ombros]. Ele diz que há algo
realmente vergonhoso, totalmente vergonhoso... Ele lembra que quando ele
era muito jovem, ele gostava da idéia de ler o trabalho de um autor em sua
totalidade, as obras completas. Como conseqüência, ele tinha grande afeição
não por autores secundários, embora sua afeição às vezes coincidisse com
eles, mas por autores que tinham escrito pouco. Algumas obras eram enormes,
avassaladoras para le, como a de Victor Hugo, de forma que Deleuze estava
prestes a dizer que Hugo não era um escritor muito bom. Por outro lado,
Deleuze conhecia as obras de Paul-Louis Courrier quase de cor, muito
profundamente. Assim, Deleuze admite ter uma queda pelos assim chamados
autores secundários, embora Villiers não seja um autor secundário. Joubert era
também um autor que ele conhecia profundamente, e uma razão pela qual ele
conhecia esses autores era por uma razão bastante vergonhosa, ele admite:
dava-lhe um certo prestígio estar familiarizado com autores que eram pouco
conhecidos... Mas era uma espécie de mania, conclui Deleuze, e custou-lhe um
certo tempo aprender quão grande era Victor Hugo, e o tamanho de sua obra
não constituía nenhuma medida.
Deleuze continua de seu jeito, concordando que nas assim chamadas
literaturas secundárias... Ele insiste no fato de que a literatura russa, por
exemplo, não está limitada a Dostoieveski e a Tolstoi, mas não se pode chamar
[Nikolai] Leskov de secundário na medida em que há tanta coisa de admirável
que tem pouco a dizer sobre isso, sobre autores secundários, mas sobre o que
ele está feliz é em ter tentado encontrar em qualquer autor desconhecido algo
que poderia lhe mostrar um conceito ou um personagem extraordinário. Mas,
sim, diz Deleuze, ele não se envolveu em nenhuma pesquisa sistemática
[nesse domínio].
Parnet persegue essa questão, ao se referir outra vez ao trabalho de Deleuze
sobre Proust como o único trabalho considerável que ele jamais dedicou a um
único autor, embora a literatura seja uma grande referência em sua filosofia.
Assim, ele pergunta sobre o fato de ele nunca ter devotada um livro inteiro à
literatura, um livro de pensamento sobre a literatura. Deleuze diz que ele
simplesmente não teve tempo, mas que ele planeja fazê-lo. Parnet diz que isso
o tem assombrado e ele responde que ele planeja fazê-lo porque ele o quer.
Parnet pergunta se será um livro de crítica, e Deleuze diz que em vez disso,
será sobre o problema do que, para ele,
significa escrever
que Parnet está familiarizada com todo o seu programa de pesquisa, assim ele
verá se tem tempo.
A última questão na letra L refere-se ao fato de que embora Deleuze leia
muitos e grandes (canônicos) autores, tem-se a impressão de que ele lê muitos
autores contemporâneos. Deleuze diz que compreende o que ela quer dizer, e
pode responder rapidamente: não é que não goste de lê-los, é que a literatura
é uma atividade verdadeiramente especializada na qual se tem de ter uma
formação, algo difícil na produção contemporânea. É uma questão de gosto,
exatamente da forma como as pessoas encontram novos pintores; tem-se que
aprender como [pintar]. Deleuze diz que ele admira muito pessoas que vão às
galerias e sentem que existe alguém que é verdadeiramente um pintor, mas ele
não pode fazer isso e ele explica por que: custou-lhe cinco anos, ele diz, para
entender - não Beckett, que aconteceu imediatamente - mas que tipo de
inovação a escrita de Robbe-Grillet representou. Deleuze afirma ter sido uma
das coisas mais estúpidas quando falou sobre Robbe-Grillet no início. Deleuze
não se considera um descobridor nessa área, enquanto que em filosofia, ele se
sente mais confiante porque ele é sensível a um novo tom e, por outro lado,
àquilo que é completamente nulo ou redundante. No domínio do romance,
Deleuze diz que é bastante sensível, o suficiente para saber o que já foi dito e
que não tem interesse algum. Ele fez, de fato, uma descoberta, do seu próprio
jeito, alguém que ele julgava ser um grande romancista, Armand Farachi. [Em
"Introdução: Rizoma",
Farachi, La dislocation, com um exemplo, entre vários outros, de um modelo de
escrita nomádica e rizomática].
Assim, a questão que Parnet levanta, diz Deleuze, é bastante razoável, mas
ele argumenta que não se deve crer que, sem experiência, se pode julgar o
que está sendo criado. O que Deleuze prefere e o que lhe traz grande alegria é
quando algo que ele mesmo está criando tem um eco em um jovem pintor ou
no trabalho de um jovem escritor. Dessa forma, Deleuze sente que ele pode ter
um tipo de encontro com o que está acontecendo atualmente, com outro modo
de criação. Deleuze diz que sua insuficiência quanto a julgamentos é
compensada por esses encontros com pessoas que estão em ressonância com
o que ele está fazendo, e vice-versa.
Parnet diz que a pintura e o cinema, por exemplo, são favoráveis a esses
encontros, uma vez que ele vai a galerias e a cinemas, mas que ela tem
dificuldade em imaginá-lo vagando em uma livraria e examinando livros que
saíram nos últimos meses. Deleuze diz que ela está certa, mas que isso está
ligado á idéia de que a literatura não muito forte neste momento, uma idéia que
é uma idéia preconcebida em sua mente, que a literatura está tão corrompida
pelo sistema de distribuição, de prêmios literários, que nem vale mesmo a
pena.
INÍCIO
SPAÇOM de Maladie-Doença ESPAALFABETO
Enquanto Parnet anuncia este título, Deleuze repete suavemente a palavra
maladie. Parnet conta que imediamente depois de haver terminado de escrever
Diferença e repetição, em 1968, Deleuze foi hospitalizado por causa de um
caso sério de tuberculose. Assim, precisamente no período, de 1968 em diante,
em que estava se referindo ao fraco estado de saúde de Espinosa e Nietzsche,
Deleuze foi forçado a conviver com a doença. Ela pergunta se ele sabia, antes,
que ele tinha tuberculose.
Deleuze diz que ele sabia que tinha algo, mas tal como muitas pessoas, não
tinha qualquer desejo de descobrir, e também ele simplesmente supôs que
fosse câncer, e ele não estava com muita pressa de descobrir. Assim, ele não
sabia que era tuberculose, não até que ele tivesse começado a cuspir sangue.
Ele diz que ele era filho de alguém com tuberculose, mas que no momento de
seu diagnóstico, não havia nenhum perigo real, graças aos antibióticos. Era um
caso sério e há alguns anos atrás ele não teria sobrevivido, enquanto que em
1968, não era mais um problema. Trata-se de uma doença sem muita dor, e
assim ele podia dizer que estava doente, mas ele sustenta que era um grande
privilégio, uma doença sem dor e curável, quase que se podia dizer que não
era uma doença. Antes disso, ele diz, sua saúde não era assim tão boa, ele
tornava-se facilmente cansado.
A questão, diz Deleuze, é a de saber se a doença tornou algo mais fácil, não
necessariamente mais bem sucedido, entretanto, especificamente um
empreendimento de pensamento, e Deleuze pensa que um estado de doença
muito enfraquecido favorece isso. Não é o caso de que se está sintonizado
com sua própria vida, mas para ele, parecia que ele estava sintonizado com a
vida. Sintonizar com a vida é diferente de pensar sobre a própria saúde. Ele
repete que ele acha que um estado frágil de saúde favorece esse tipo de
sintonização. Quando ele falava anteriormente sobre autores como Lawrence
ou Espinosa, em alguma medida eles viram algo imenso, tão avassalador que
era demais para eles. Isso realmente significa, diz Deleuze, que não podemos
pensar se não estamos já em um domínio que excede, em alguma medida, a
nossa força, que nos torna frágeis. Ele repete que ele sempre teve um estado
frágil de saúde, e isso foi reforçado quando ele foi diagnosticado como tendo
tuberculose, momento no qual ele adquiriu todos os direitos concedidos a um
estado frágil de saúde.
Parnet observa que as relações de Deleuze com os médicos e com os
remédios mudaram desse momento em diante: ele teve que visitar médicos,
tomar remédios regularmente, e tratava-se de uma restrição imposta sobre ele,
ainda mais que ele não gosta de médicos. Deleuze diz, sim, embora não se
trate de algo pessoal entre ele e os médicos; ele observa que ele tem sido
tratado por médicos muito charmasos, "deliciosos". O que ele não gosta é de
um tipo de poder, ou uma forma pela qual eles manipulam o poder - aqui
Deleuze observa que, uma vez mais, eles voltam a questões discutidas
anteriormente, como se metade das letras já discutidas fossem englobadas e
dobradas sobre a totalidade.
Deleuze afirma que ele acha odioso a forma como os médicos manipulam o
opoder, e que ele tem um grande ódio não por indivíduos, mas pelo poder
médico e pela forma como os médicos o utilizam. Há apenas uma coisa que o
faz feliz, diz ele, por mais que o tenha desagradado. Isso ocorre quando eles
utilizam suas máquinas e o examinam. Ele considera essas coisas como muito
desagradáveis para um paciente uma vez que se trata de exames que
realmente parecem não ter qualquer utilidade a não ser a de fazer os médicos
se sentirem melhor sobre diagnósticos que eles já fizeram. Se eles têm tanto
talento, diz Deleuze, então esses médicos parecem fazer esses exames cruéis
apenas se sentirem melhor ao jogar com esses inadmissíveis exames. Assim,
o que fazia Deleuze feliz era cada vez que ele tinha ser testado por uma
dessas máquinas - sua respiração era demasiadamente inaudível para ser
registrada por suas máquinas, ou eles incapazes de submetê-lo a um exame
cardíaco - eles ficavam furiosos com ele, eles odiavam esse pobre paciente,
porque eles podiam aceitar tão facilmente o fato de que seu diagnóstico podia
estar errado, mas não o fato de que suas máquinas não funcionassem com ele.
Além disso, Deleuze julga-os muito pouco cultivados, ou quando eles tentam
ser cultivados, os resultados são catastróficos. Eles são uma gente muito
estranha, diz Deleuze, mas seu consolo é que se eles ganham um monte de
dinheiro, eles não têm tempo para gastá-lo e se aproveitar disso porque eles
têm uma vida muito dura. Assim, é verdade, repete Deleuze, ele não acha os
médicos muito atraentes, mas os indivíduos podem ser muito bons e no
entanto eles tratam as pessoas como cachorros em suas funções oficiais.
Assim, isso realmente revela a luta de classes porque uma pessoa um
pouquinho rica é ao menos um pouco polida, menos quando fazendo cirurgia.
Os cirurgiões são um caso completamente à parte. Deleuze diz que é
necessário algum tipo de reforma dos médicos.
Parnet pergunta se Deleuze toma remédios o tempo todo, e Deleuze diz, sim,
ele gosta de fazê-lo, não o incomoda exceto pelo fato de que eles tem a fatigá-
lo. Parnet está surpresa pelo fato de que Deleuze realmente gosta de tomar
remédios, e Deleuze diz, sim, quando há um monte! Em seu estado atual (em
1988), sua pequena pílula toda manhã é uma verdadeira piada (bouffonnerie)!
Mas ele também acha bastante útil. Deleuze diz que ele sempre foi a favor dos
remédios, mesmo no domínio da psiquiatria. [Deleuze esfrega seu rosto e olhos
com freqüência enquanto responde e escuta].
Parnet diz que com essa fadiga ligada à doença, pensamos em Blanchot
escrevendo sobre a fadiga e a amizade. Ela diz que a fadiga exerce um grande
papel em sua vida, e algumas vezes se tem a impressão que se trata de uma
excusa para evitar um monte de coisas que o chateiam/incomodam, e que a
fadiga tem sempre sido útil. Deleuze diz que o fato de ser afetado dessa forma,
esse pensamento, remete ao tema da potência, isto é, o que significa realizar,
efetivar, uma potência, o que significa fazer o que se pode. Deleuzediz que se
trata de uma noção extremamente complicada, ligado àquilo que constitui
nossa impotência, por exemplo, nossa saúde frágil ou nossa doença. Deleuze
sustenta que trata-se de uma questão de saber que uso fazer dela de forma
que, por meio dela, possamos recuperar uma pequena potência. Assim,
Deleuze está seguro de que a doença poderia ser utilizada para algo, e não
meramente em relação à vida para a qual ela deveria dar algum sentimento.
Para Deleuze, a doença não é um inimigo, não é algo que dá um sentimento de
morte, mas, antes, algo que da um sentimento de vida, mas não no sentido de
que "eu ainda quero viver, e assim que estiver curado, eu começarei a viver".
Deleuze diz que não pode pensar em nada mais abjeto no mundo do que
aquilo que as pessoas chamam de bon vivant. Pelo contrário, os bon vivants
são homens com uma saúde muito fraca. Assim, para Deleuze, a questão é
clara: a doença agudiza um tipo de visão da vida ou de sentio da vida. Ele
enfatiza que quando ele diz visão, visão da vida, é no sentido de dizer "ver a
vida", essas dificuldades que agudizam , que dão vida à visão da vida, a vida
em toda a sua potência, em toda a sua beleza. Ele está bastante seguro a esse
respeito.
Parnet pergunta se Deleuze vê a fadiga como uma doença e Deleuze diz que é
uma outra coisa. Para ele, significa: fiz o que pude hoje, isto é, o dia terminou.
E vê a fadiga biologicamente como o dia estando terminado. É possível que
pudesse durar por outras razões, razões sociais, mas a fadiga é a formulação
biológica do dia terminado, de não ser capaz de extrair nada mais de si
mesmo. Assim, se você considera-a dessa forma, diz Deleuze, não se trata de
um sentimento incômodo, mas, antes, agradável, a menos que não se tenha
feito nada, então, de fato, é angustiante. É a esses estados de fadiga, esses
estados frágeis, algodoados que Deleuze sempre foi sensível. Ele gosta desse
estado, o fim de algo, e provavelmente tem um nome em música, uma coda, a
fadiga como uma coda. Parnet diz que antes de discutir a idade avançada, eles
podem discuti sua relação com a comida. Deleuze diz baixinho "ah! a velhice".
Parnet diz que ele gosta de comidas que parecem lhe trazer força e vitalidade,
como tutano e lagosta. Ela observa que tem uma relação especial com a
comida já que ele não gosta de comer. Deleuze diz que é verdade. Para ele,
comer é a coisa mais chata do mundo. Beber é algo extraordinariamente
interessane, mas comer o chateia mortalmente. Ele detesta beber sozinho, mas
com com alguém que ele gosta muda tudo, mas isso não transforma a comida,
apenas ajuda-o a suportar comer, tornando-o menos chato mesmo se acontece
que ele não tenha nada para dizer. Todas as pessoas dizem isso a respeito de
comer sozinho, sustenta Deleuze, e isso prova como comer é chato já que a
maioria das pessoas admite que comer sozinho é uma tarefa abominável.
Tendo dito isso, continua Deleuze, há certamente coisas das quais ele gosta
muitíssimo [mes fêtes], que são muito especial, apesar do desprazer geral que
ele tem. Ele diz que pode agüentar quando outros comem queijo - Parnet diz
que Deleuze não gosta de queijo - e para alguém que gosta de queijo, ele diz
que é uma das poucas pessoas tolerantes em relação a isso, que não se
levanta e sai ou expulsa a pessoa que está comendo queijo. Para Deleuze, o
gosto por queijo é um pouco como uma espécie de canibalismo [neste ponto
Parnet dá uma risada estridente], um horror total.
Continuando, Deleuze imagina que alguém pode lhe perguntar qual poderia
sua comida favorita, um empreendimento extremamente maluco, diz ele, mas
ele sempre volta a três coisas que acha sublimes, mas que são, muito
apropriadamente, repugnantes: língua, cérebro e tutano. Trata-se de alimentos
bastante nutritivos. Há uns poucos restaurantes em Paris, diz Deleuze, que
servem tutano e depois disso ele não pode comer nada mais. Eles preparam
esse pequenos quadrados de tutano, realmente extramemamente fascinantes,
diz ele, cérebro, língua...
Depois, Deleuze tenta situar esse gosto de forma diferente, em relação com
coisas que eles já discutiram: essas coisas constituem uma espécie de trindade
já que se pode dizer - Deleuze admite que isso é um tanto demasiado
anedótico - que o cérebro é Deus, o pai, o tutatno, o filho já que são
vertebrados que são um pouco lagostas. Assim Deus é o cérebro, os
vertebrados o filho, Jesus, e a língua o Espírito Santo, que é a força da língua.
Ou, e aqui Deleuze hesita um pouquinho, é o cérebro que é o conceito, o
tutano é o afeto, e a língua, o precepto... Deleuze pede a Parnet que não lhe
pergunte por quê, é que ele simplesmente vê essas trindades como muito...
[ele não completa a sentença].
Assim, ele conclui, isso compõe uma refeição fantástica. Ele pergunta se ele
alguma vez comeu os três juntos. Talvez em um aniversário com amigos
[Parnet dá uma risada aqui], eles podem fazer para ele uma real refeição,
não?, diz ele, uma festa. [Ele ri, muito satisfeito]. Parnet diz que além de comer
essas três coisas, ela quer discutir a velhice. Deleuze diz, sim, comer todas as
três coisas seria um pouco demais, e Parnet diz, rindo, sim, repugnante!
Deleuze retoma a questão da velhice, outra vez dizendo baixinho: "ah! a
velhice!".
Deleuze diz que há alguém que falou sobre a velhice muito bem, um romance
de Raymond Devos que, para Deleuze, é a melhor declaração sobre a velhice.
Deleuze a vê como uma idade esplêndida. Obviamente, há problemas, por
exemplo, a gente é dominado por uma certa lentidão. Mas o pior é quando
alguém diz "não, você não é tão velho", porque ao dizer isso, ele não
compreende qual é a queixa. Deleuze diz, eu me queixo, eu digo, oh, estou
velho, isto é, invoco as forças da velhice, mas então alguém tenta me animar,
dizendo "não, você não está tão velho". Assim, diz Deleuze, eu lhe dou uma
bengalada [alors je vais lui foutre un coup de canne] [Parnet dá uma risada],
porque ele ............. Deleuze diz que seria melhor dizer: "sim, na verdade, você
está certo!", mas trata-se de pura alegria, diz Deleuze, alegria em toda parte
exceto nesse tantinho de lentidão.
O que é horrível na velhice, continua Deleuze, é a dor e a tristeza, mas essas
coisas não são a velhice. Deleuze diz que ele quer dizer que o que torna a
velhice patética, algo triste, é as pessoas velhas e pobres que não têm dinheiro
suficiente para viver, nem um mínimo de saúde, apenas essa saúde muito
fraca, e muito sofrimento. É isso que é abominável, mas não a velhice. Deleuze
argumenta que não se trata absolutamente de um mal. Com dinheiro suficiente
e um pouco de saúde restante, é ótimo porque é apenas na velhice que se
chegou. Não é um sentimento de triunfo, apenas o fato de tê-la alcançado:
afinal, em um mundo que inclui guerras e vírus horríveis, se passou ileso por
tudo isso.
E trata-se de uma idade, continua ele, na qual se trata apenas de uma questão
de uma única coisa, de ser. Não mais de ser isso ou aquilo, mas ser velho é
apenas ser, ponto, nada mais. Ele é, muito simplesmente. Quem tem o direito
de simplesmente ser? Pois uma pessoa velha pode dizer que tem planos, mas
ele espera terminar dois livros nos quais ele está realmente empenhado, um
sobre literatura, outro sobre filosofia, mas isso não muda o fato de que está
livre de todos os planos. Quando se é vleho, diz Deleuze, não se é mais
suscetível/sensível, não se tem mais qualquer decepção fundamental, tende-se
a ser muito mais desinteressado, e gosta-se realmente das pessoas por elas
mesmas. Para Deleuze, parece que a velhice afia sua percepção de coisas que
ele nunca tinha visto antes, elegâncias em relação às quais ele nunca tinha
sido sensível. Ele vê melhor, ele sustenta, porque ele olha para uma pessoa
por si mesma, como se fosse uma questão de transportar uma imagem, um
percepto da pessoa.
Deleuze admite que há dias que passam com sua quota de fadiga, mas para
ele, a fadiga não é uma doença, mas algo mais, não a morte, apenas o sinal do
final de um dia. Obviamente, há angústias na velhice, diz ele, mas a gente tem
que afastá-las, e é fácil afastá-las, um pouco como se faz com lobisomens ou
vampiros, não se pode estar sozinho quando se começa a envelhecer porque
se está muito lento para sobreviver. Assim, temos que evitar algumas coisas,
mas o que é maravilhoso, diz ele, é que as pessoas liberam a gente, a
sociedade deixa você
maravilhoso, não que a sociedade realmente tivesse Deleuze em suas
amarras, mas alguém que não tenha a idade de Deleuze, não aposentado, não
pode ter nenhuma idéia de quanto alegria se pode ter em ser liberado pela
sociedade. Obviamente, ele continua, quando ele ouve os velhos se
queixarem, trata-se de velhos que não querem ser velhos ou que não querem
ser tão velhos quanto são. Ele não podem suportar estar aposentados, e
Deleuze não sabe por que, já que eles poderiam descobrir algo, e ele não
acredita que as pessoas aposentadas não possam descobrir algo para fazer.
Deleuze diz que é preciso que a gente se dê uma sacudida, de forma que
todos parasitas que a gente teve nas costas toda a vida caiam no chão, e o que
resta ao nosso redor? Nada além das pessoas que a gente ama e que nos
apóiam e que nos amam, se eles sentem a necessidade disso. O resto deixa
você
Deleuze diz que não pode suportar a sociedade, e ele só sabe disso agora por
causa de sua vida de aposentado. Ele se vê como completamente
desconhecido da sociedade. O que é catastrófico, ele declara, é quando
alguém que pensa que ele ainda pertence à sociedade pede que ele dê uma
entrevista. Deleuze faz uma pausa para dizer que a filmagem do Abecedário é
diferente já que o que eles estão fazendo pertence inteiramente ao seu sonho
de velhice. Mas quando alguém pede uma entrevista, ele gostaria de perguntar
se a pessoa está bem da cabeça. Essa pessoa não está sabendo que Deleuze
é um velho e que a sociedade o liberou? [Deleuze dá uma risada]. Mas
Deleuze pensa que as pessoas confudem duas coisas: não se deve falar sobre
os velhos, mas sobre a pobreza e o sofrimente, pois quando se é velho, pobre
e se está sofrendo, não existe uma palavra para descrever isso. Uma pessoa
puramente velha, que não é nada mais que velha, significa que ela
simplesmente é. Parnet diz que o fato de Deleuze estar doente, cansado, e
velho, [Deleuze dá uma risada], é às vezes difícil para as pessoas ao seu
redor, menos velhas que ele, seus filhos, sua esposa. Deleuze responde que
não é um grande problema para seus filhos. Poderia haver se eles fossem mais
jovens, mas agora eles estão grandes o suficiente para ter sua própria vida, e
Deleuze não é um fardo para eles, não é um problema exceto talvez em termos
de afeição, quando eles dizem, oh, ele parece realmente muito cansado.
Quanto à Fanny, sua esposa, Deleuze não pensa que seja um problema,
embora possa ser, ele não sabe. É muito difícl, ele diz, perguntar a alguém que
se ama o que ele/ela poderia fazer em uma outra vida. Deleuze imagina que
Fanny gostaria de ter viajado mais, mas ele pergunta o que ela teria descoberto
de tão diferente se ela tivesse viajado. Ela (e Parnet, diz ele) tem uma
formação literária forte, assim ela foi capaz de encontrar coisas esplêndidas por
meio da leitura de romances e isso, diz Deleuze, é como viajar. Certamente há
problemas, mas eles estão para além de sua compreensão, ele admite.
Parnet diz que, para terminar, ela quer perguntar sobre seus projetos, como o
projeto sobre a literatura ou O que é Filosofia? Quando ele empreende um
projeto como esses, o que ele encontra de prazeroso como um velho que se
envolve neles? Ele lembra-o que anteriormente ele disse que talvez ele não os
terminasse, mas que existe algo de divertido neles. Deleuze diz que é algo
realmente maravilhoso, toda uma evolução, e quando se é velho tem-se uma
certa idéia do que se espera fazer que se torna cada vez mais puro, cada vez
mais purificado. Deleuze diz que ele pensa nas famosas linhas japonesas de
desenho, linhas que são tão puras e então não há nada mais, nada mais senão
pequenas linhas. É assim que ele concebe o projeto de um velho, algo que
seria tão puro, tão nada, e ao mesmo tempo, tudo, maravilhoso. Com isso ele
quer dizer chegar a uma sobriedade, algo que só pode acontecer tarde na vida.
Ele menciona seu O que é a Filosofia?, sua pesquisa sobre isso: em primeiro
lugar, é bastante agradável, em sua idade, sentir que ele sabe a resposta, e
que ele é o único a saber, como se ele entrasse em um ônibus, e ninguém
mais soubesse. [Parnet dá uma risada]. Tudo isso, para Deleuze, é muito
prazeroso. Talvez ele pudesse ter criado um livro sobre O que é a Filosofia?
trinta anos atrás, um livro que seria um livro muito, muito, diferente da forma
pela qual ele o concebe agora. Há uma espécie de sobriedade tal que... - quer
ele seja bem sucedido ou não - ele sabe que é agora que ele pode conceber
isso, de qualquer modo, que não se assemelha... ok. [Deleuze não termina a
frase, o quadro se congela e os créditos entram no fim da fita].
N de Neurologia ESPAALFABETO
ÇO
Parnet apresenta este título como ligando a neurologia e o cérebro. Deleuze diz
que a neurologia é muito difícil para ele, mas que ela sempre o fascinou. Para
responder por quê, ele considera a questão do acontece na cabeça de alguém
quando tem uma idéia. Quando não há nenhuma idéia, ele diz, é como uma
máquina de pin-ball. Como isso se comunica dentro da cabeça? Elas não
funcionam de acordo com trajetos pré-formados e com associações prontas, de
forma que alguma coisa aconteça - se soubéssemos do que se trata! Isso
interessa muito Deleuze, uma vez que ele sente que se compreendêssemos
isso, poderíamos compreender tudo, e as soluções devem ser extremamente
variadas. Ele clarifica isso: duas extremidades no cérebro podem muito bem
estabelecer contato, isto é, por meio de processos elétricos de sinapse. E,
então, há outros casos que são talvez muito mais complexos, por meio da
descontinuidade na qual há um fosse que deve ser preenchido. Deleuze diz
que o cérebro é cheio de fissuras (fentes), que o preenchimento ocorre apenas
em um regime probabilístico. Ele acredita que existem relações de
probabilidade entre dois vínculos, e que essas comunicações dentro de um
cérebro são fundamentalmente incertas, estando fundamentadas em leis de
probabilidade. Deleuze vê isso como uma questão do que nos faz pensar, e ele
admite que alguém pode objetar que ele não está inventado nada, que se trata
da velha questão de associação de idéias. Pode-se quase perguntar-se, ele
diz, por exemplo, quando um conceito é dado ou uma obra de arte é olhada,
pode quase tentar esboçar um mapa do cérebro, suas correspondências, quais
são as comunicações contínuas e quais seriam as comunicações descontínuas
de um ponto ao outro.
Algo impressionou Deleuze, ele admite, uma história que os físicos usam, a
transformação do padeiro: pegue um pedaço de massa para sová-la, estique
até formar um retângulo, dobre sobre ela mesma, estique outra vez, etc., você
faz uma série de transformações e após "x" transformações, dois pontos
completamente contíguos acabam por necessariamente se transformar no
oposto, muito distantes entre si. E existem pontos distantes que, como
resultado de "x" transformações, acabam por ficar bastante próximos. Assim,
Deleuze se pergunta se, quando buscamos por algo na nossa cabeça, não
pode haver esse tipo de combinações (brassages), por exemplo, dois pontos
que ele não pode ver como associar, e como resultado de numerosas
transformações, ele acaba por vê-las lado a lado. Ele sugere que entre um
conceito e uma obra de arte, isto é, entre um produto mental e um mecanismo
cerebral, existem semelhanças muito, muito estimulantes e que, para ele, as
questões, como se pensa?, e, o que significa pensar?, sugerem que com o
pensamento e o cérebro, as questões estão entrelaçadas. Deleuze diz que ele
acredita mais no futuro da biologia molecular do cérebro que no futuro da
ciência da informação ou de qualquer teoria da comunicação.
Parnet observa que Deleuze sempre concedeu um lugar especial à psiquiatria
do século XIX, que, de forma ampla, abordou a neurologia e a ciência do
cérebro, que ele deu uma prioridade à psiquiatria em detrimento da psicanálise
precisamente por causa das relações da psiquiatria com a neurologia. Assim,
pergunta ela, isso ainda ocorre? Deleuze diz, sim, completamente. Como ele
disse antes, há também uma relação com a farmácia, a possível ação das
drogas sobre o cérebro e as estruturas cerebrais que pode ser localizada em
um nível molecular, em casos de esquizofrênia. Para Deleuze, esses aspectos
parecem ser um futuro mais certo do que a psiquiatria mentalista (psychiatrie
spiritualiste).
Parnet faz uma pergunta metodológica: não é nenhum segredo que Deleuze
mais um autodidata quando ele lê uma revista de neurologia ou outra revista
científica. Além disso, ele não é muito bom e Matemática, em contraste com
alguns filósofos que ele estudou, como Bergson (que era formado em
Matemática), Espinosa (forte em Matemática), Leibniz (não é preciso dizer que
era forte em Matemática). Assim, pergunta ela, como faz Deleuze para ler
sobre esses temas? Quando ele tem uma idéia e precisa de algo que lhe
interessa, mas não compreende nada, como ele se vira?
Deleuze diz que existe algo que lhe consola muito, especificamente que ele
está firmemente persuadido da possibilidade de leituras variadas de uma
mesma coisa. Já em Filosofia, ele acreditava fortemente que não é preciso ser
um filósofo para ler filosofia. Não se trata apenas do fato de que a Filosofia está
aberta a duas leituras: a filosofia precisa de duas leituras ao mesmo tempo.
Uma leitura não-filosófica da Filosofia é absolutamente necessária, sem a qual
não haveria qualquer beleza na Filosofia. Isto é, com não-especialistas lendo
Filosofia, essa leitura não-filosófica da Filosofia não carece de nada e é
inteiramente adequada. Deleuze qualifica essa afirmação, dizendo que duas
leituras podem não funcionar para toda filosofia. Ele tem dificuldade em ver
uma leitura não-filosófica de Kant. Mas em Espinosa, ele diz que não é
absolutamente nada impossível que um agricultor ou um vendedor de loja
possa ler Espinosa e, no caso de Nietzsche, mais ainda, com todos os filósofos
que Deleuze admira acontece isso. Assim, continua ele, não existe qualquer
necessidade de compreender, uma vez que a compreensão significa um certo
nível de leitura. Se alguém fosse objetar que para apreciar uma pintura de
Gauguin seria necessário ter algum conhecimento especializado sobre ela,
Deleuze responde que, naturalmente, algum conhecimento especializado é
necessário, mas há também emoções extraordinárias, autênticas,
extraordinariamente puras, extraordinariamente violentas, em uma total
ignorância da pintura. Para ele, é completamente óbvio que alguém pode
receber uma pintura como um raio e não saber nada sobre a pintura. De forma
similar, alguém pode ser inteiramente tomado de emoção por uma obra musical
sem saber uma palavra. Deleuze diz que ele, por exemplo, emociona-se muito
com as óperas [de Alban Berg] Lulu e Wozzeck, e que o concerto To the
Memory of an Angel [também de Berg] o emocionou acima de qualquer outra
coisa.
Assim, ele sabe que é melhor ter uma percepção competente, mas ele ainda
assim sustenta que tudo o que conta no mundo, no domínio da mente, está
aberto a uma dupla leitura, desde que não seja algo feito aleatoriamente como
alguém que é autodidata faria. Antes, é algo que empreendemos começando
de nossos problemas tomados de algum outro lugar. Deleuze quer dizer que é
com base no fato de ele ser um filósofo que ele tem uma percepção não-
musical da música, o que faz com que a música seja extraordinariamente
tocante para ele. De forma similar, é com base no fato de ser um músico, um
pintor, isso ou aquilo, que se pode empreender uma leitura não-filosófica da
Filosofia. Se essa segunda leitura (que não é segunda) não ocorresse, se não
houvesse essas duas e simultâneas leituras, seria como ambas as asas num
pássaro, a necessidade de duas leituras juntas. Além disso, Deleuze
argumenta que mesmo um filósofo deve aprender a ler uma grande filósofo
não-filosoficamente. O típico exemplo, para ele, é ainda, outra vez, Espinosa:
ler Espinosa em uma brochura, em qualquer momento e lugar que se possa,
para Deleuze, cria tanta emoção quanto uma grande obra musical. E, em
alguma medida, ele diz, a questão não é compreender, uma vez que nos
cursos que Deleuze costumava dar, estava tão claro que algumas vezes os
estudantes compreendiam, algumas vez não, e todos somos assim, algumas
vezes compreendemos, outras não.
Deleuze volta à questão de Parnet sobre a ciência, que ele vê da mesma
forma: em alguma medida, estamos sempre no extremo (pointe) de nossa
ignorância, que é exatamente onde devemos nos instalar, no extremo de nosso
conhecimento ou de nossa ignorância, o que é a mesma coisa, a fim de ter
alguma coisa a dizer. Se ele esperasse para saber o que ele ia escrever, diz
Deleuze, literalmente, se ele esperasse para saber o que ele ia falar, então ele
sempre teria que esperar porque o que ele iria dizer não teria nenhum
interesse. Se ele não corre um risco, se ele se instala e falar com um ar
acadêmico sobre algo que ele não sabe, então isso é um outro exemplo sem
interesse. Mas se ele fala desse limite mesmo, entre saber e não-saber, é ali
que devemos nos instalar para ter alguma coisa para dizer.
Em ciência, é a mesma coisa, sustenta Deleuze, e a confirmação que ele
encontrou é que ele sempre teve grandes relações com cientistas. Eles nunca
o tomaram por um cientista, eles não pensam que ele compreenda grande
coisa, mas alguns deles lhe dizem que isso funciona. Ele atribui isso ao fato de
que permanece aberto aos ecos, por falta de uma palavra melhor. Ele dá o
exemplo de um pintor que ele gosta muito, Delaunay, e pergunta, o que ele
faz? Ele observou algo bastante surpreendente, e isso faz a discussão voltar à
questão do que significa ter uma idéia. A idéia de Delaunay é que a própria luz
forma figuras, figuras formadas pela luz, e ele pinta figuras de luz, não
aspectos que a luz assume quando encontra um objeto. É assim que Delaunay
se desliga de todos os objetos, conseqüentemente não mais criando pinturas
com objetos. Deleuze diz que leu algumas coisas muito bonitas de Delaunay,
nas quais ele julga o cubismo muito severamente. Delaunay diz que Cézanne
conseguiu quebrar o objeto, quebrar a compoteira, e que os cubistas gastaram
seu tempo buscando colá-la. Assim, em vez da eliminação de objetos em favor
de figuras rígidas e geométricas, Delaunay prefere figuras de pura luz. Isso é
algo, um evento pictorial, um evento-Delaunay. Deleuze sugere que existe uma
forma pela qual isto está ligado à relatividade, à teoria da relatividade, e ele
argumenta que não é preciso saber muito, é apenas ser autodidata que é
perigoso. Deleuze diz que se ele sabe um pouquinho sobre relatividade, é isso:
em vez de ter sujeitado linhas de luz, as linhas seguidas pela luz (lignes suivies
par lumière), a linhas geométricas, pertencentes ao experimento de
Michaelson, há uma inversão total. Agora, as linhas de luz condicionam as
linhas geométricas, da perspectiva científica trata-se de uma inversão
considerável, que mudará tudo uma vez que a linha de luz não tem mais a
constância da linha geométrica e tudo mudou. É esse aspecto da relatividade,
diz ele, que mais corresponde aos experimentos de Michaelson. Deleuze não
quer dizer que Delaunay aplica a relatividade; Deleuze celebra o encontro entre
um empreendimento pictorial e um empreendimento científico que
normalmente não teriam relação entre si. Outra exemplo é o dos espaços
riemannianos, sobre os quais Deleuze diz que ele sabe pouco em termos de
detalhas, mas o suficiente para saber que se trata de um espaço construído
peça por peça e no qual as conexões entre peças não são pré-determinadas.
Mas por razões completamente diferentes, Deleuze precisava de um conceito
espacial para as partes nas quais não há conexões perfeitas e que não são
pré-determinadas. "Eu preciso disso", diz ele, "j'en ai besoin, moi!", e ele não
podia gastar cinco anos de sua vida tentando compreender Riemann, porque
ao final dos cinco anos ele não teria feito nenhum progresso com seu conceito
filosófico. E ao ir ao cinema, ele vê um espécie estranha de espaço que todo
mundo conhece como sendo o uso do espaço nos filmes de Bresson, nos quais
o espaço é raramente global, mas construído peça por peça Vemos pequenos
pedaços de espaço que se juntam, por exemplo, em uma seção de uma cela,
em Condamé à mort, a ligação não sendo pré-determinada. Perguntando por
que é assim, Deleuze diz que é porque eles são manuais, a prtir dos quais
podemos compreender a importância das mãos para Bresson. Na verdade, em
The Pickpocket, é a velocidade com o qual o objeto roubado é passado de uma
mão para a outra que determinará as conexões entre os pequenos espaços.
Deleuze tampouc quer dizer que Bresson está aplicando espaços
riemannianos, mas, antes, que um encontro ocorre entre um conceito
filosófico,uma noção científica, e um percepto estético. Perfeito! (Deleuze
discute esse efeito espacial
tempo.
Na ciência, diz Deleuze, ele sabe apenas o suficiente para avaliar encontros;
se ele soubesse mais, ele estaria fazendo ciência e não filosofia. Assim, em um
grande medida, ele fala bem sobre algo que ele não sabe, mas ele fala do que
ele não sabe como uma função do que ele sabe. Ele argumenta que tudo isso
é uma questão de tato, não existe nenhum sentido em brincar sobre isso,
nenhum sentido em adotar um ar de quem sabe quando não se sabe, mas
ainda assim, Deleuze diz que ele teve encontros com pintores que foram os
mais belos dias de sua vida. Não encontros físicos, mas naquilo que Deleuze
escreve - o maior deles sendo [Simon] Hantaï [pintor húngaro; obrigado a Tim
Adams pela grafia e pelas seguintes referências: A dobra, p. 33, e O que é
filosofia, p. 195, CS], com quem algo se passou entre eles. Deleuze diz o que
foi seu encontro com Carmelo Bene [em Superposições]. Deleuze nunca fez
teatro, não compreende nada sobre teatro, mas ele tem que admitir que algo
importante aconteceu aí também. Há cientistas com os quais essas coisas
também funcionam. Deleuze diz que ele conhece alguns matemáticos que
tiveram a gentileza de ler o que Deleuze tem escrito, e disseram que funciona
bastante bem.
Deleuze admite que seus comentários aqui estão indo mal uma vez que ele
sente que ele está tomando os ares de uma auto-satisfação completamente
desprezível. Para ele, entretanto, a questão não é se ele sabe ou não bastante
coisa de ciência, nem se ele é capaz de aprender alguma coisa sobre ciência,
a coisa importante, ele admite, é não dizer besteiras, e estabelecer ecos,
fenômenos de ecos entre um conceito, um percepto e uma função (uma vez
que, para Deleuze, a ciência não funciona por conceitos, mas por funções).
Dessa perspectiva, Deleuze precisava dos espaços riemannianos, ele sabia
que eles existiam, não sabia exatamente o que eles eram, mas isso era o que
bastava.
INÍCIO
SPAÇOO de Ópera ESPAALFABETO
Parnet começa admitindo que este título é uma pequena brincadeira, já que,
exceto por causa de Wozzeck e Lulu, de Berg, certamente pode-se dizer que a
ópera não é uma das atividades ou um dos interesses de Deleuze. Em
comparação comFoucault ou com François Châtelet, que gostavam de ópera
italiana, Deleuze nunca escutou realmente ópera. O que mais lhe interessava
era a canção popular, particularmente Edith Piaf, pela qual ele tem uma grande
paixão. Assim, ela pergunta se ele pode falar um pouco sobre isso.
Deleuze responde que ele está sendo um pouco severa ao dizer isso. Em
primeiro lugar, ele escutava bastante música, só que isso faz muito tempo;
desde então, ele parou porque ele concluiu que se tratava de uma .....,
tomando muito tempo, e uma vez que ele tem muitas coisas a fazer - não
tarefas sociais, mas seu desejo de escrever coisas- ele simplesmente não tem
tempo para ouvir música, ou para ouvi-la o suficiente.
Parnet observa que Châtelet trabalhava escutando ópera, e Deleuze diz que,
primeiro, ele não poderia fazer isso, e ele não está certo de que Châtelet o
fazia enquanto trabalhava e sim, obviamente, quando ele recebia pessoas em
sua casa. A ópera algumas vezes se sobrepunha ao que as pessoas estavam
dizendo quando ele estava cheio delas, mas por Deleuze não é assim que
funciona. Mas, ele diz que preferiria distorcer a questão a seu favor,
transformando-a em: o que é que cria uma comunidade entre uma canção
popular e uma obra de arte musical? Esse é um assunto que ele acha
fascinante. O caso de Edith Piaf, por exemplo: Deleuze considera-a uma
grande chanteuse, com uma voz extraordinária; além disso, ele tem esse jeito
de cantar fora do tom e, então, constante perseguindo a nota falsa e corrigindo-
a, essa espécie de sistema em desiquilíbrio que constantemente está pegando
o errado e corrigindo-o. Para Deleuze, isso parece acontecer em qualquer
estilo. Isso é algo que Deleuze gosta muito porque trata-se da mesma questão,
no nível da canção popular, que ele faz sobre tudo: ele se pergunta, o que isso
me traz de novo? Especialmente nas produções, elas trazem algo de novo. Se
for feito 10, 100, 1000 vezes, talvez até mesmo muito bem feito, Deleuze
compreende então o que Robbe-Grillet disse: Balzac era obviamente um
grande escritor, mas que interesse há em criar romances hoje como Balzac os
criava? Além disso, essa prática macula os romances de Balzac, e assim
ocorre com tudo.
O que Deleuze acha particularmente comovente em Piaf é que ela introduziu
algo inovativo em relação à geração precedente, Frehel e Adabia, mesmo em
sua auto-apresentação, e em sua voz. Em cantores mais modernos, temos que
pensar que Charles Trenet. Bastante literalmente, Deleuze diz, nunca ouvimos
ninguém como ele. Deleuze insiste nesse ponto: para a filosofia, para a música,
para a pintura, para a arte, seja a canção popular ou o resto, até mesmo o
esporte, a questão é exatamente a mesma: o que há ai de novo? Isso não deve
ser interpretado no sentido de moda, mas exatamente no sentido oposto: o que
é inovativo é algo que não é da moda, talvez se torne da moda, mas não é da
moda uma vez que não é esperado pelas pessoas. Quando Trenet estava
cantando bem, as pessoas diziam que ele estava louco; as pessoas não dizem
mais isso, mas pode-se dizer eternamente que ele estava louco; e ele assim
permaneceu. Piaf parecia grandiosa a todos nós.
Parnet pergunta sobre a admiração de Deleuze por Claude François, e Deleuze
diz que, certo ou errado, ele achava que ele tinha encontrado algo fresco em
Claude François, que tentou descobrir algo diferente, enquanto existem muitos
que não tentam absolutamente nada. Para Deleuze, é a mesma coisa, trazer
algo fresco e tentar encontrar algo diferente. Para Piaf, o que ela estava
buscando? Deleuze relembra o que ele disse anteriormente sobre a saúde
fraca e a vida forte. Piaf é o próprio exemplo de alguém que viu coisas na vida,
a força da vida, que a quebrou. Deleuze era receptivo a Claude François
porque ele buscou um tipo novo de show, um show-canção, inventendo uma
espécie de canção dançada, que obviamente implicava usar playback. Assim,
tanto melhor ou tanto pior, diz Deleuze, que também permitiu que ele
empreendesse essa pesquisa sobre o som. Até o final, François estava
insatisfeito com uma coisa, os textos de suas canções que eram bastante
fracos e estúpidos. Ele tentou arranjar seus textos de forma que ele obtivesse
qualidades textuais melhores, como "Alexandrie, Alexandra", uma boa canção.
Deleuze diz que hoje ele não está ao par da música, mas quando ele liga a
tevê - agora que ele está aposentado ele tem o direito de ligar a tevê - ele nota
que quanto mais canais há mais eles se parecem, e mais nulos eles se tornam,
uma nulidade radical. O regime de competição, competindo entre si, produz o
mesmo, a nulidade eterna, e o esforço para saber o que faz o ouvinte ver este
canal em vez daquele, é amedrontador. O que ele ouve aí dificilmente pode ser
chamado de canção, já que não há nem mesmo a voz, ninguém tem a mínima
voz.
Mas, então, diz Deleuze, não vamos nos queixar. O que todos querem,
sustenta ele, é essa espécie de domínio que seria tratada duplamente pela
canção popular e pela música. Deleuze volta-se para algo que ele e Félix
Guattari desenvolveram, algo que ele considera um conceito filosófico muito
importante, o ritornello: trata-se do ponto em comum entre a canção popular e
a música. Para Deleuze, o ritornello é o ponto comum. Deleuze sugere que se
defina o ritornello como uma pequena canção, "tra-la-la-la". "Quando digo "tra-
la-la"?, pergunta Deleuze. Ele insiste que ele está fazendo filosofia ao
perguntar quando ele canta para si mesmo. Em três ocasiões: ele canta essa
toada quando ele está se movendo em seu território, secando seus móveis, o
rádio tocando ao fundo. Assim, ele canta
quando ele está
canta para si próprio quando não está em casa, ao cair da noite, na hora da
angústia, quando ele está indo pra casa, e precisa encorajar-se, cantando "tra-
la-la". Ele está se dirigindo para casa. E ele canta para si mesmo quando ele
diz "adeus, estou saindo, e levarei você comigo em meu coração", é uma
canção popular, e eu canto para mim mesmo quando estou saindo de casa
para ir para algum outro lugar. Em outras palavras, continua Deleuze, o
ritornello está absolutamente ligado - o que leva a discussão de volta ao "A de
Animal" - ao problema do território e de sair ou entrar no território, isto é, o
problema da desterritorialização. Eu volto para meu território ou tento voltar, diz
Deleuze, ou eu desterritorializo a mim mesmo, isto é, eu saio, eu deixo meu
território.
Qual é a relação com a música?, pergunta ele, e insiste que temos que avançar
ao criar um conceito. É por isso que Deleuze invoca a imagem do cérebro.
Tomando seu próprio cérebro neste momento como exemplo, ele
repentinamente diz a si próprio: "o lied. O que é o lied?". Tem sido sempre a
voz, como uma canção elevando seu canto como uma função de sua posição
em relação ao território. Meu território, o território que eu não tenho mais, o
território ao qual estou tentando chegar outra vez, é isso que o lied é. Seja
Schumann ou Schubert, é isso que ele fundamentalmente é. É isso que
Deleuze considera ser o afeto. Quando ele estava dizendo anteriormente que a
música é a história do devir e as forças de devires, era algo desse tipo que ele
queria dizer, grande ou medíocre.
Deleuze pergunta: "o que verdadeiramente a grande música?". Para Deleuze,
isso aparece com uma operação artística de música. Elas começam a partir
dos ritornellos, e Deleuze inclui mesmo os músicos mais abstratos. Ele acredita
que cada músico tem seus tipos de ritornellos, falando de pequenas toadas, de
pequenos ritornellos. Ele menciona Vinteuil e Proust [em A busca do tempo
perdido], três notas, depois duas, um pequeno ritornello, que passa a partir de
Vinteuil, depois passa a partir do septeto. Para Deleuze, é o ritornello que se
deve encontrar na música e mesmo sob a música, algo prodigioso que um
grande músico cria: não ritornellos que ele ou ela coloca um depois do outro,
mas ritornellos que se dissolvem em um ritornello ainda mais profundo. Trata-
se de todos os ritornellos de territórios, de uma território particular e um outro
que se tornará organizado no centro de um imenso ritornello, um ritornello
cósmico, na verdade! Tudo que Stockhausen diz sobre a música e o cosmos,
toda essa forma de voltar a temas que eram comuns na Idade Média e na
Renascença - Deleuze diz que ele é completamente a favor desse tipo de idéia
que a música teria uma relação com o cosmos.
Ele volta a um músico que ele admira e que o tem afetado muito, Mahler, sua
Canção da terra - para Deleuze, não se poderia dizer de forma melhor. Isso é
perpetuamente como elementos em gênese, na qual há perpetuamente
pequenos ritornellos algumas vezes baseados em dois sininhos de vaca.
Deleuze acha que é extraordinariamente comoventem nas obras de Mahler a
forma pela todos os pequenos ritornellos, que são já obras músicas de gênio -
ritornellos de taverna, ritornellos de pastores, etc. - a forma pela qual eles
realizam uma composição em uma espécie de grande ritornello que se tornará
a canção da terra. Deleuze sugere ainda outro exemplo em Bartok, um grande
gênio. Deleuze admira a forma como ele conecta e reconecta ritornellos locais,
ritornellos de minorias nacionais, etc., e os reúne em uma obra que ainda não
foi plenamente examinada.
Deleuze vai adiante, unindo a música e a pintura exatamente da mesma forma.
Ele menciona Klee que disse: o pintor não "mostra o visível, mas torna visível";
estão implícitas aqui forças que não estão visíveis e, para um músico, é a
mesma coisa: o músico não mostra o audível, ele ou ela torna audíveis forças
que não são audíveis, tornando audível a música da terra, música na qual ele
ou ela inventa, exatamente como o filósofo. O filósofo torna pensável forças
que não pensáveis, que são de uma natureza bastante bruta, bastante brutal. É
a comunhão de pequenos ritornellos com o grande ritornello que, para Deleuze,
define a música, algo que ele acha muito simples. É a força da música, uma
força para fornecer um nível realmente cósmico, como se as estrelas
começassem a cantar uma pequena toada de um sino de vaca, uma pequena
toada de pastor. Ou, ele sugere, poderia ser o inverso, os sinos de vaca que
são subitamente elevados ao estado de sons celestiais ou infernais.
Parnet objeta que ela não pode explicar exatamente por que, mas ela tem a
impressão, a partir da explicação de Deleuze, plena de erudição musical, que
ele busca o visual por meio da música, por meio do ritornello. Ela o vê
implicando o visual. Ela diz que compreende a extensão na qual o audível é
ligado às forças cósmicas, tal como o visual, mas ela observa que Deleuze não
freqüenta concertos, algo o incomoda ali, ela não ouve música, e tem como
hábito ir a exposições de arte ao menos uma vez por semana.
Deleuze diz que se trata de uma questão de possibilidade e de tempo, porque,
para responde a essa questão, o que o interessa, acima de tudo, na literatura,
é o estilo. O estilo, para ele, é o auditivo puro. Ele diz que ele não faria a
distinção que ela faz entre o visual e o audível. Ele admite que ele raramente
vai a concertos porque é agora mais complicado fazer reservas antecipadas.
Tudo isso são detalhes práticos da vida, enquanto que quando há uma
exposição de arte não é preciso fazer nenhuma reserva. Mas, ele diz que cada
vez que ele foi a um concerto, ele o achou demasiado longo uma vez que ele
tem uma receptividade muito baixa, embora ele sempre tenha sentido emoções
profundas. Depois, ele diz que não está certo que Parnet esteja completamente
errada, mas pensa que ela poderia estar enganada, porque sua impressão não
é completamente verdadeira. Em todo caso, isso é ainda mais difícil que falar
de pintura. É o ponto mais alto, falar sobre música.
Parnet diz que há muitos filósofos que falaram sobre música. Deleuze a
interrompe para dizer que o estilo é sonoro, não visual, e ele está só está
interessado na sonoridade nesse nível. Parnet continua: a música está
imediatamente ligada à filosofia, assim uma porção de filósofos falou sobre
música, por exemplo, Jankelevitch - Deleuze concorda - mas exceto Merleau-
Ponty, há poucos filósofos que falaram sobre pintura. Deleuze diz:
"realmente?". Ele não está seguro, nem Parnet, ela admite, mas Barthes,
Jankelevitch, mesmo Foucault, falaram sobre música. Deleuze faz um gesto
como que descartando isso, quando ela diz "Foucault", já que Foucault não
falou sobre música, diz Deleuze, era um segredo para ele, sua relação com a
música era um completo segredo. Parnet diz, sim, que ele estava muito
próximo de certos músicos. Deleuze não quer discutir isso, ele diz que são
segredos que Foucault não discutia. Parnet persegue isso, dizendo que
Foucault estava muito próximo do mundo musical, mesmo que fosse um
segredo - Deleuze diz, sim, sim, sim...
Parnet, então, observa que há exceção de [Alban] Berg, para Deleuze... E ele
engata a partir daí: sim, e para explicar sua admiração, ele diz que isso está
ligado à questão de por que alguém é devotado a alguma coisa. Deleuze
admite que ele não sabe por que, mas ele descobriu ao mesmo tempo aquelas
peças musicais para orquestra... [como ele havia feito às vezes durante a
entrevista, Deleuze aqui mostra uma dificuldade em respirar, para e diz:] Você
percebe o que é ser velho [faz movimentos com sua garganta], você não pode
encontrar nomes... as peças orquestrais desse mestre [Parnet fornece-lhe o
nome:] Schoenberg. Há não muito tempo, Deleuze relembra ter tocado essas
peças orquestrais quinze vezes seguidas, vindo a reconhecer alguns
momentos completamente avassaladores. Ao mesmo tempo, Deleuze
encontrou Berg, alguém que ele podia ouvir o dia toda. Mas Deleuze diz que
isso é também uma questão de uma relação com a terra. Mahler, diz Deleuze,
era alguém que ele veio a conhecer muito mais tarde, mas trata-se de música e
terra. Deleuze diz que no caso de músicos muito velhos, há, plenamente, uma
relação entre a música e a terra, mas a extensão desse tipo de relação nas
obras de Berg e de Mahler, Deleuze achou isso extremamente avassalador.
Para ele, isso significa tornar sonoras as forças da terra, por exemplo, no
Wozzeck [de Berg], que Deleuze considera um grande texto já que se trata da
música da terra.
Parnet observa que há uma porção de gritos nessa obra e que Deleuze gosta
muito de gritar. Deleuze concorda: para ele, há uma relação entre o canto e os
gritos, de fato, que essa escola [de música] foi capaz de reintroduzi-la como um
problema. Os dois gritos, Deleuze diz, nunca o cansam, o grito horizontal que
flutua ao longo da terra em Wozzeck, e o grito completamente ertical da
condessa em Lulu [outra obra de Berg] - eles são como duas densas
culminâncias de gritos. Tudo isso interessa Deleuze também porque, em
filosofia, existem canções e gritos, verdadeiras canções na filosofia, os
conceitos são verdadeiras canções e
verdadeiros gritos
repente, Aristóteles diz: você tem que parar! Ou um outro diz, não, nunca vou
parar! Espinoza: o que pode um corpo? Nós nem sequer sabemos o que um
corpo pode! Assim, a relação grito-canção ou conceito-afeto é praticamente a
mesma, é algo que Deleuze aceita completamente e que o afeta imensamente.
INÍCIO
SPAÇOP de ProfessorESPAALFABETO
[Outro dia; Deleuze está com uma camisa de colarinho aberto; outros óculos]
Parnet lembra a Deleuze que aos 64 anos de idade, ele passou quase 40 como
professor, primeiro em escolas secundárias francesas (lycées), depois na
universidade. Em 1988, Deleuze não queria mais dar aulas, assim ela,
primeiramente, pergunta se ele senta falta delas, já que ele disse que dava
suas aulas com paixão, assim ela pergunta se ele sente falta de não estar mais
dando aulas. Deleuze diz, não, de forma alguma. Ele concorda que as aulas
foram uma parte importante de sua vida, mas quando ele se aposentou ele
ficou bastante feliz já que ele estava menos inclinado a dar aulas. Essa
questão, para ele, é bastante simples: as aulas têm equivalentes em outros
domínios, mas lhe exigiam um tempop enorme de preparação. De novo, como
tantas outras atividades, para 5 ou 10 minutos, no máximo, de inspiração, é
preciso muita preparação. Deleuze diz que sempre gostou muito de fazer isso,
preparar bastante para chegar a esses momentos de inspiração, mas quanto
mais o tempo avançava mais ele tinha que preparar apenas para ter sua
inspiração progressivamente reduzida. Assim já era tempo de se aposentar, e
isso não o fez, de forma alguma, feliz, já que as aulas era algo que ele gostava
imensamente, mas então se tornara algo que ele necessitava menos. Agora,
ele tem sua escrita que coloca outros tipos de problemas, mas ele gostava
imensamente de ensinar. Parnet pergunta-lhe o que significa preparar
bastante, quanto tempo ele levava preparando. Deleuze diz que ensaiar (des
répétitions) para uma aula é como qualquer outra coisa. Ele compara isso com
o teatro ou do canto, há ensaios, e se não ensaiamos o suficiente não há
qualquer inspiração. Em uma aula, significa ter momentos de inspiração, sem
os quais a aula nada significa. Parnet diz que isso não pode significar que ele
ensaiasse na própria sala de aula, e Deleuze diz, obviamente não, cada
atividade tem seus modos de inspiração. Ele a descreve como enfiá-la na
cabeça. Enfiá-la na cabeça e achar que aquilo que estamos dizendo é
interessante. É óbvio, diz Deleuze, que se o orador nem sequer acha que o que
ele está dizendo tem interesse... e isso não é evidente, ele insiste, achar que
aquilo que estamos dizendo é interessante, apaixonante. Deleuze diz que não
se trata de uma forma de vaidade, de nos considerarmos apaixonantes e
interessantes, é o assunto do qual estamos tratando que temos que achar
apaixonante. E para fazer isso, Deleuze admite, às vezes temos
verdadeiramente que nos aguilhoar. A questão, diz ele, não é a de saber se é
interessante, mas de nos estimular ao ponto de sermos capazes de falar sobre
algo com entusiasmo: é isso que é ensaiar.
Assim, Deleuze diz que ele precisava menos disso, especialmente desde que
as aulas eram algo muito especial, aquilo que ele chama de cubo, um espaço-
tempo particular no qual muitas coisas acontecem. Deleuze dia que ele gosta
muito menos de dar conferências, nunca gostou de confer~encias já que elas
tendem a ser um espaço-tempo demasiado pequeno, enquanto uma aula é
algo que se estende uma semana à outra. Trata-se de um espaço e de uma
temporalidade muito, muito especial, algo que tem constitui uma seqü~encia.
Ele esclarece que não é que se pode refazer ou recuperar quando algo não vai
bem, mas há um desenvolvimento interno em uma aula. Além disso, as
pessoas mudam de uma semana para a outra, e a audiência de uma aula, diz
Deleuze, é muito estimulante.
Parnet volta ao começo da carreira de Deleuze, como professor de liceu.
Deleuze diz que isso não significa muita coisa já que aconteceu em uma época
na qual o liceu não era, de forma alguma, o que se tornou. Deleuze diz que ele
pensa nos jovens professores que hoje são agredidocs nos liceus. Deleuze diz
que foi professor de liceu logo depois da Liberação, quando era completamente
diferente. À pergunta de Parnet, ele responde que ele lecionou em duas
cidades do interior, uma que ele gostava, outra que ele gostava menos. Amiens
era a que ele gostava porque era uma vidade muito livre, muita aberta,
enquanto Orleans era muito mais séria. Tratava-se de um período no qual, diz
ele, um professor de filosofia era tratado com muita generosidade, ele podia
fazer o que ele quisesse. Deleuze diz que ele ensinava seus alunos a usar um
serrote musical, uma vez que ele tinha aprendido isso na época, e todo mundo
achava isso bastante normal. Hoje, Deleuze acha que isso não seria mais
possível nos liceus. Parner pergunta o que ele pensava ensinar com o serrote
musical [risos], e Deleuze diz que lhes ensinava curvas, porque temos que
curvar o serrote para obter o som a partir de uma curva, e essas eram curvas
bastante comoventes, algo que lhes interessava [Deleuze devolve o sorriso a
Parnet]. Ele diz que se trata já de uma variação infinita, e rindo, Deleuze diz,
sim, mas que ele não fazia só isso, ele preparava para o baccalauréat, ele era
um professor muito consciente [Deleuze dá uma risada]. Foi aí, diz Parnet, que
ele conheceu [Jean] Poperen, e Deleuze diz, sim, mas ele viajava mais que
Deleuze, e ficou muito pouco tempo
tinha uma pequena mala e um grande despertador porque ele não gostava de
relógios, e todo dia ele saía e levava o despertador para a sala de aula.
Deleuze o achava muito charmoso. Parnet pergunta com quem Deleuze se
juntava, como professor de liceu, e Deleuze relembra os professores de
ginástica, mas ele diz que não se lembra de muita coisa. Ele diz que a sala dos
professores no liceu também deve ter mudado muito hoje. Parnet diz que,
como aluno, a gente imagina a sala dos professores como um lugar muito
opressivo, mas Deleuze diz, sim, não, há todo o tipo de pessoas lá, sérios ou
brincalhões, mas que, na verdade, ele não ia muito lá.
Parnet continua, depois de Amiens e Orleans, Deleuze foi para Paris, para o
Liceu Louis-le-Grand, no curso preparatório [Deleuze diz, sim, sim, sim,
enquanto Parnet revisa sua carreira], assim ela pergunta se ele pode se
lembrar de algum aluno que tenha sido notável ou nem tanto. Deleuze repete
essa pergunta, refletindo, dizendo que ele não pode lembrar, talvez alguns
tenham se tornado professores, mas nenhum que ele conheça se tornou
ministro do governo. Ele dá uma risada ao lembrar de alguém que se tornou
delegado de polícia, mas diz que realmente não havia ninguém de especial,
todos seguiram seu próprio caminho.
Parnet continua, referindo-se agora aos anos da Sorbonne, dos quais se têm a
impressão, diz elea, que correspondem aos tempos de sua história da filosofia.
Depois, ele foi para Vincennes que foi uma experiência totalmente crucial e
determinante depois da Sorbonne (Parnet indica que ela está pulado Lyon que
veio depois da Sorbonne). Ela pergunta se ficou feliz em se tornar um professor
universitário depois de ter dado aula no liceu. Deleuze diz que "feliz" não é
realmente uma palavra apropriada nesse caso, tratava-se simplesmente de
uma carreira normal, e se ele tivesse que voltar ao liceu, não teria sido
dramático, apenas anormal e um fracasso, assim do jeito que as coisas
aconteceram era normal, e ele não tem nada a dizer sobre isso. Parnet
pergunta se preparava suas aulas na universidade de forma diferente das aulas
no liceu, e ele diz, não, de forma alguma, exatamente a mesma coisa, ele
sempre deu suas aulas da mesma forma. Parnet parece surpresa, perguntando
outra vez se suas preparações para as aulas do liceu eram tão intensas quanto
suas preparações para as aulas na universidade, e ele repete, "obviamente",
três vezes. Em todo caso, diz Deleuze, temos que estar totalmente imbuídos do
material, temos que gostar daquilo sobre o qual estamos falando, e isso não
acontece sozinho, nós temos que ensaiar, preparar, percorrer as coisas
mentalmente, temos que encontrar um jeito, um truque. À medida que a fita
corre, ele diz que é bastante divertido que temos que encontrar algo como uma
porta que temos que passar apenas a partir de uma posição particular. Depois
que a fita muda, Parnet faz a mesma pergunta (sobre as preparações de aula)
uma terceira vez, e Deleuze diz simplesmente que não havia nenhuma
diferença para ele, de forma algua, entre os dois tipos de aula.
Parnet diz que já que eles estão discutindo o trabalho universitário, talvez ele
pudesse falar sobre sua tese de doutorado. Ela pergunta quando ele a
defendeu. Deleuze lembra a ela que ela já havia escrito vários livros antes de
sua defesa e, em alguma medida, isso aconteceu porque ele não queria
terminar a tese, uma reação freqüente. Ele lembra que trabalhava muito e, em
algum momento, ele se deu conta de que ele tinha que ter a tese, que se
tratava de algo urgente. Assim, ele fez um esforço máximo, e finalmente ele a
apresentou como uma das primeiras defesas depois do Maio de 1968, no
começo de 1969. Isso criou uma situação bastante privilegiada para ele,
porque a banca estava intensamente preocupada com uma única coisa, em
como organizar a defesa de modo a evitar os grupos que invadiam as salas de
aula da Sorbonne. Eles estavam com bastante medo, já que foi imediatamente
após a volta às aulas depois dos eventos de Maio de 1968, assim eles não
sabiam o que podia acontecer. Deleuze lembra o presidente da banca dizendo
que havia duas possibilidades: ou eles faziam a sessão de defesa no térreo,
onde havia uma vantagem, a existência de duas saídas [Deleuze dá uma
risada], de forma que eles pudessem sair rapidamente, mas a desvantagem
era que os grupos invadiam principalmente as salas do térreo; ou eles
poderiam ir para o segundo andar, com a vantagem de haver menos grupos
naquele andar, mas a desvantagem de apenas uma saída, assim se algo
acontecesse, eles poderiam ficar impossibilitados de sair. Assim, quando
Deleuze defendeu sua tese, não foi nunca possível encarar de frente os
membros da banca, uma vez que todos estavam vigiando a porta [Deleuze dá
uma risada] para ver se alguém ia entrar de repente. Parnet pergunta quem era
o presidente da banca, mas Deleuze diz que é um segredo. Parnet diz que ela
poderia fazê-lo confessar, mas Deleuze insiste, não, especialmente dada a
angústia do presidente naquele momento, e também que ele era muito
encantador. Curiosamente, o presidente estava mais perturbado do que
Deleuze, e é raro que uma banca esteja mais perturbada que o candidato.
Parnet sugere que ele era provavelmente mais conhecido naquela altura do
que qualquer outra pessoa da banca, mas Deleuze diz que ele não era
absolutamente bem conhecido. Parnet diz que a defesa se centrava no que
depois foi publicado como o livro Diferença e repetição, e Deleuze diz, sim,
então Parnet relembra que ele era bem conhecido por seus trabalhos sobre
Proust e Nietzsche [aqui Deleuze faz uma espécie de resmungo como único
resposta, visivelmente constrangido e depois balança seus ombros para
Parnet].
Parnet volta a Vincennes, e Deleuze diz que quanto a Vincennes, Parnet está
certa, de que houve uma mudança, não na forma como ele preparava suas
aulas (o que ele chama de ensaios), nem no estilo de uma aula, mas a partir de
Vincennes, Deleuze diz que não tinha mais uma audiência de alunos. Era isso
que era tão esplêndido sobre Vincennes e que não valia, em geral, para todas
as universidades que estavam voltando ao normal. Ao menos em filosofia -
Deleuze não sabe se isso é verdade para toda a universidade de Vincennes -,
havia um tipo completamente novo de público, não mais feito de estudantes,
mas uma mistura de todas as idades, todos os tipos de atividades profissionais,
incluindo pacientes de hospitais psiquiátricos. Tratava-se talvez de um dos
públicos mais multicoloridos, o qual encontrava uma misteriosa unidade em
Vincennes. Isto é, era ao mesmo tempo o mais diverso e o mais coerrente, em
função de Vincennes, que dava a essa multidão díspar uma espécie de
unidade. Deleuze diz que passou toda sua carreira em Vincennes, mas que se
ele tivesse sido forçado posteriormente a ir para outra faculdade, ele teria se
sentido completamente perdido. Quando ele visitiva outras faculdades depois
disso, era como viajar de volta no tempo, era como aterrisar no século XIX.
Assim, em Vincennes, ele falava para um público misto, jovens pintores,
pessoas do campo do tratamente psiquiátrico, músicos, drogados, jovens
arquitetos, pessoas de países muito diferentes. Havia ondas de visitantes que
mudavam a cada ano. Ele lembra da chegada repentina de 5 ou 6 australianos.
Deleuze não sabia por quê, e no ano seguinte eles tinham ido embora. Os
japoneses estavam constantemente lá, a cada ano, e havia sul-americanos,
negros... Deleuze diz que era um público inestimável e fantástico. Parnet diz
que era porque, pela primeira vez, Deleuze estava falando para não-filósofos,
sua prática que ele havia mencionado antes, e Deleuze concorda: tratava-se
plenamente de filosofia que era dirigida igualmente a filósofos e a não-filósofos,
exatamente como a pintura é dirigida a pintores e a não-pintores, ou como a
música não está limitada a especialistas em música, mas trata-se da mesma
música, do mesmo Berg ou do mesmo Beethoven, dirigidos a pessoas que não
são especialistas em música e que não são músicos. Para a filosofia, deve ser
estritamente o mesmo, diz Deleuze, ser dirigida a não-filósofos e a filósofos,
sem nenhuma mudança. A filosofia dirigida aos não-filósofos não deveria ser
simplificada, da mesma forma que em música não se simplifica Beethoven para
não-especialistas. É a mesma coisa em filosofia, diz Deleuze, a filosofia tem
sempre seu público duplo, um público não-filosófico assim como um público
filosófico. E se eles não estão juntos, então não há nada.
Parnet pede a Deleuze para explicar um sutil distinção: nas conferências há
não-filósofos, mas ele odeia conferências. Deleuze diz, sim, ele odeia
conferências porque elas são artificiais e também por causa do antes e do
depois das conferências. Ele diz que gosta tanto de dar aulas, que é uma
maneira de falar diferentemente das conferências. Nas conferências, falamos
antes, e então falamos depois, e não tem a pureza de uma aula. E depois há a
característica de um circo nas conferências - embora Deleuze admita que as
aulas também têm suas características de circo, mas ao menos elas o divertem
e tendem a ser mais profundas. Em uma conferência, há um lado falso, e
Deleuze diz que ele não gosta das pessoas que as freqüentam, ou até mesmo
simplesmente falar com elas: ele as acha muito tensas, muita venais [trop
putain], muita estressadas... não muito interessante, de forma alguma. Parnet
faz com que ele volte ao que ela chama de seu "querido público" em Vincennes
que era tão mixto na época, com loucos, drogados, como disse Deleuze, que
faziamintervenções malucas, pegavam a palavra e, apesar disso, nada disso
parece jamais ter incomodado Deleuze. Apesar de todas essas intervenções no
meio de suas aulas, elas continuavam completamente magistrais, e nenhum
intervenção feita durante a aula parecia jamais ter algum caráter objetável, isto
é, o aspecto magistral da aula era sempre mantido.
Deleuze emite seu constrangido "oui, oui, oui", enquanto ela completa sua
pergunta, depois diz que precisa encontrar outra palavra, uma vez que esta
expressão - aula magistral - é imposta pela universidade, mas que é preciso
uma outra. Deleuze vê duas concepções de uma aula: a primeira é aquela na
qual o objetivo é incitar reações bastante imediatas por parte do público por
meio de questões e interrupções. Trata-se de toda uma tendência, diz Deleuze,
uma concepção particular de aula. Por outro lado, há a assim chamada
concepção "magistral", com uma pessoa (le monsieur) que fala. Não é que ele
prefira um ou outra, diz Deleuze, ele simplesmente não tinha escolha, ele só
tinha praticado a segunda forma, a concepção magistral. Assim é preciso uma
palavra diferente.
É mais como uma concepção musical, sugere Deleuze. Para ele, nós não
interrompemos a música, seja ela bou ou ruim, ou apenas se ela é realmente
ruim, mas, em geral, não interrompemos a música enquanto podemos
facilmente interromper palavras faladas. Ele pergunta o que significa essa
concepção musical de uma aula. Ele fala a partir de sua experi~encia, embora
ele não queira dizer que essa seja a melhor concepção, é apenas a maneira
como ele vê as coisas. Tal como ele vivenciou os públicos, seus públicos,
ocorre freqüentemente que alguém não compreende em um momento
particular, e então há algo como um efeito retardado, um pouco como na
música. Em um dado momento, não entendemos um movimento, diz Deleuze,
e então três ou dez minutos mais tarde, torna-se claro: algo aconteceu nesse
meio-tempo. O mesmo ocorre com esses efeitos retardados, de repente uma
pessoa escutando [na aula] pode certamente não entender algo em um dado
momento, e dez minutos mais tarde, torna-se claro, há uma espécie de efeito
retroativo. Assim, se ele tivesse já interrompido - é por isso que Deleuze acha
as interrupções tão estúpidas, ou até mesmo certas perguntas que as pessoas
fazem. Em vez de fazer uma pergunta, porque se está no meio de uma não-
compreensão, a pessoa faria melhor
da questão, e Deleuze diz que os melhos alunos são aqueles que fazem as
perguntas na semana seguinte. Ele não insistiu nisso, mas no fim, eles lhe
passavam uma mensagem de uma semana para a outra - uma prática que ele
gostava - dizendo que ele tinha que voltar a um determinado ponto. Assim, ao
esperar dessa forma, havia uma espécie de comunicação.
Deleuze traz à tona um segundo e importante ponto em sua concepção de uma
aula: uma vez que em um curso que ele deu as aulas tinham a duração de 2
horas e meia e ninguém podia escutar por tanto tempo, para ele, uma aula não
é algo destinado a ser entendido em sua totalidade. Uma aula, diz Deleuze, é
uma espécie de matéria em movimento, realmente matéria em movimento, que
é assim que é musical. Assim, devemos deixar que cada grupo ou cada pessoa
extraia dela o que lhe convém. Uma aula ruim é uma aula que literalmente não
convém a ninguém, mas, obviamente, não se pode esperar que convenha
simplesmente a todo mundo. As pessoas têm que esperar, argumenta Deleuze,
e é óbvio que algumas pessoas quase caem no sono, e então, por efeito de
algum mistério, elas acordam nos momentos que lhes interessam. Não existe
qualquer lei que preveja que isto ou aquilo vá interessar uma pessoa ou outra.
Não são nem mesmo os assuntos que são interessantes, diz Deleuze, mas
algo mais. Em uma aula, ele vê esta emoção, uma quantidade igual de emoção
e inteligência, e se não há emoção, então não há nada na aula, não tem
nenhum interesse. Assim, não se trata de uma questão de seguir tudo ou
escutar a tudo, mas de ficar atento de forma que a pessoa apreenda o que lhe
convém no momento certo. Isso será algo pessoal, e é por isso que para
Deleuze uma audiência variada é tão crucialmente importante, porque ele
sente claramente que os centros de interesse mudam e saltam de um ponto a
outro, formando uma espécie de uma textura esplêndida.
Parnet observa que isso corresponde a seu público, mas para o "concerto"
Deleuze inventou a expressão "filosofia pop" e "filósofo pop". Deleuze balança
a cabeça, sim, é isso o que ele queria dizer. Parnet continua, dizendo que sua
aparência [allure], como a de Foucault, era algo muito especial, seu chapéu,
suas unhas [extremamente longas, o que é bastante visível no vídeo], sua voz.
Assim, ela pergunta se Deleuze estava consciente desse tipo de mistificação
por parte de seus alunos, em torno de sua aparência, como eles tinham
mitificado Foucault. Primeiramente, estava ele consciente de ter essa
aparência e depois de ter essa voz especial? Deleuze diz, certamente, já que a
voz em uma aula - Deleuze relembra o que ele disse antes: se a filosofia
mobiliza e trata de conceitos, que é a vocalização de conceitos em uma aula,
então isto é normal, exatamente da mesma maneira que existe um estilo
escrito de conceitos. Os filósofos não são pessoas que escrevem sem a
pesquisa ou a elaboração de um estilo, é como os artistas, e eles são artistas.
Assim, uma aula implica que vocalizemos, até mesmo [Deleuze diz que ele fala
mal o alemão] uma espécie de Sprechgesang [estilo de canto declamado e
modulado de acordo com as intonações da palavra, utilizado pelos
compositores da escola dodecafônica de Viena - Schonberg, TTS], claramente.
Assim, para além do fato de que há mitificações - você viu suas unhas?, etc. -
esse tipo de coisas acontece com todos os professores, já na escola primária.
O que é mais importante é a relação entre a voz e o conceito. Parnet diz que
para fazê-lo feliz, seu chapéu era como o vestido negro de Piaf, com um estilo
(allure) muito preciso. Deleuze responde que sua questão de honra era nunca
usá-lo simplesmente por essa razão, assim se produzia esse efeito, tanto
melhor, muito bem. Parnet pergunta se isso faz parte de seu papel de
professor, e Deleuze repete sua pergunta em voz alta antes de dizer, não,
trata-se de um complemento dele. O que faz parte do papel de um professor é
o que ele disse antes: ensaio prévio e inspiração no momento, esse é o papel
do professor.
Parnet diz que ele nunca quis nem uma "escola" [baseada em suas obras] nem
discípulos, e essa recusa de discípulos corresponde a algo muito profundo
nele. Deleuze rompe em uma risada quando ela diz isso, afirmando que ele
não recusa, de forma alguma, geralmente funciona em ambos os sentidos:
ninguém quer ser seu discípulo tanto quanto ele não quer nenhum. Uma
"escola" é uma coisa horrível, por uma razão muito simples: toma muito tempo,
nós nos transformamos em um administrador. Consideremos os filósofos que
tiveram sua própria "escola", como os witgensteinianos: não formam um grupo
muito divertido. Os heideggerianos formam uma escola: em primeiro lugar, isso
implica que algumas terríveis contas sejam ajustadas, implica exclusividades,
implica um calendário, toda uma administração. Deleuze diz que ele observou
essas rivalidades entre os heideggerianos franceses, liderados por Beaufret, e
os heideggerianos belas, liderados por Develin, um verdadeira luta de facão,
abominável para Deleuze, sem nenhum interesse.
Deleuze claramente pensa em outras razões, dizeno que mesmo no nível da
ambição, ser o líder uma "escola" [ela dá um suspiro], diz ele, "olhe para Lacan,
Lacan"... Lacan também foi o líder de uma "escola" [Deleuze dá uma risada]. É
horrível, diz ele, cria tantas preocupações. Temos que nos tornar
maquiavélicos para assumir uma tal liderança, e então ele despreza isso. Para
ele, a "escola" é o oposto de um movimento. Ele dá um exemplo: o Surrealismo
era uma "escola", com contas ajustadas, tribunais, exclusões, etc., tendo
Breton como líder; enquanto Dada era um movimento. Deleuze diz que se ele
tivesse um ideal - e ele afirma que ele não pretende ter sido bem sucedido
nisso -, seria o de participar de um movimento, mas ser o líder de uma "escola"
não parece, para Deleuze, ser um destino invejável [ele dá uma risada]. O ideal
é o movimento, não, de forma alguma, ter garantias e ter assinado idéias e
fazer com os discípulos as repitam. Para Deleuze, há duas coisas importantes:
relaçõs que podemos ter com os estudantes, significa que ensinar-lhes que
eles devem estar felizes na solidão. Eles continuam dizendo: um pouco de
comunicação sem estar sozinho, nós estamos tão sós, etc., e é por isso que
eles querem "escolas". Eles não podem fazer nada a não ser em função de sua
solidão, assim devemos ensinar-lhes as vantagens de sua solidão, reconciliá-
los com sua solidão. Esse, diz Deleuze, era seu papel como professor.
O segundo aspecto é um pouco a mesma coisa: em vez de introduzir noções
que constituíriam uma "escola", ele queria noções ou conceitos que
circulassem na aula. Não essas se tornassem algo comum, mas de uso comu,
que pudessem ser manipuladas de várias formas. Isso só podia ocorrer, diz
Deleuze, se ele endereçasse isso a outras pessoas solitárias que torceriam
essas noções de acordo com seu próprio jeito, que as utilizassem na medida
de suas necessidades. Assim, todas essas noções relacionam-se a
movimentos e não a "escolas".
Parnet pergunta se hoje a era dos grandes professores já passou, uma vez que
as coisas não parecem ir muito bem. Deleuze diz que ele não tem muitas idéias
sobre isso já que ele não pertence mais a esse mundo. Ele diz que saiu em
uma época que era assustadora, e ele não podia mais compreender como os
professores podiam continuar a dar aulas, já que se haviam tornado
administradores. Deleuze argumenta que a atual tendência da política é clara:
a universidade deixará de ser um lugar de pesquisa, em completa consonância
com a entrada forçada de disciplinas que não têm nada a ver om as disciplinas
universitárias. Deleuze diz que seu sonho seria que as universidades
continuassem como locais de pesquisa e que, juntamente com as
universidades, as escolas técnicas se multiplicariam, nas quais eles podiam
ensinar contabilidade, informática, mas com as universidades intervindo na
contabilidade e na informática apenas no nível da pesquisa. E poderia haver
todos os acordos que se quisesse entre uma escola técnica e a universidade,
com um escola enviando seus alunos para continuar cursos de pesquisa na
universidade. Mas desde que eles introduziram matérias do domínio dessas
escolas na universidade a coisa se deteriorou. Não é mais um local de
pesquisa, e nós nos tornamos crescentemente engolidos por essas chateações
administrativas, todas essas reuniões na universidade. É por isso que, diz
Deleuze, ele disse que não vê mais como os professores podem preparar uma
aula, e ele imagina que alguns fazem a mesma coisa ano após ano. Ele admite
que pode estar errado, que talvez eles ainda preparem novas aulas: tanto
melhor. A tendência parece ser, para Deleuze, o desaparecimento da pesquisa
na universidade, a ascenção de disciplinas não-criativas, e o que ele chama de
adaptação da universidade ao mercado de trabalho. Deleuze argumenta que
não é o papel da universidade se adapatar ao mercado de trabalho, mas o
papel das escolas técnicas.
INÍCIO
SPAÇOQ de Questão ESPAALFABETO
Parnet diz que a filosofia serviu, para Deleuze, para colocar questões e
problemas, e que as questões são construídas com o propósito não de
respondê-las, mas de deixar essas questões para trás. Assim, por exemplo,
deixando a história da filosofia para trás significou criar novas questões. Em
uma entrevista, não se faz realmente questões a Deleuze, assim ela pergunta
como Deleuze deixa isso para trás. Parnet vê isso como uma espécie de
escolha forçada, e assim pergunta qual é a diferença, para Deleuze, entre uma
questão no contexto da mídia e uma questão na história da filosofia. Deleuze
faz uma pausa, dizendo que é difícil. Na mídia, há conversas a maior parte do
tempo, não questões, não problemas, apenas perguntas. Se dizemos, como
você está?, isso não constitui um problema. "Que horas são?" não é um
problema, mas uma pergunta. Se vemos o nível geral na televisão, mesmo em
programas supostamente sérios, está cheio de perguntas, "o que você acha
disso?" não constitui um problema, mas um pedido de opinião, uma pergunta.
É por isso que a TV não é muito interessante. Deleuze não tem um interesse
muito grande nas opiniões das pessoas.
Ele dá o exemplo da questão: você acredita em Deus? Ele pergunta onde está
o problema, onde está questão. Não há nenhum problema, nenhuma questão.
Assim, se colocassem questões ou problemas num programa de TV, Deleuze
diz que o número de programas é enorme, mas raramente ocorre que um
programa de TV abranja qualquer problema. Deleuze sente que eles poderiam,
por exemplo, pergunta sobre a questão chinesa. Mas o que ocorre em geral é
que eles convidam especialistas em China [Deleuze dá uma risada] que dizem
coisas sobre a China que poderíamos nós mesmos deduzir, sem saber
qualquer coisa sobre a China [risos]. Voltando à questão mais ampla sobre
Deus, qual é o problema ou a questão sobre Deus? Não é se acreditamos em
Deus ou não, coisa que não interessa a muita gente, mas o que quer dizer
quando se pronuncia a palavra "Deus"? Deleuze sugere que isso pode
significar: somos julgados após a morte? Assim, de que forma isso constitui um
problema? Deleuze vê isso como estabelecendo uma relação problemátic entre
Deus e a instância do julgamento. Assim, é Deus um juiz? Isso é uma questão.
Outro exemplo é Pascal; alguém sugere seu texto sobre a aposta: Deus existe
ou não? Apostamos nisso, lemos o texto de Pascal e vemos que não se trata
de uma questão de aposta porque, argumenta Deleuze, Pascal coloca uma
outra questão: não é se Deus existe ou não, o que não seria uma coisa muito
interessante, mas é: qual é melhor modo de existência, o modo de alguém que
acredita que Deus existe, ou o modo de alguém que acredita que Deus não
existe? Assim, a questão de Pascal não diz respeito à existência (ou não) de
Deus, mas, antes, à existência de quem quer que seja que acredita na
existência de Deus ou não. Por várias razões, diz Deleuze, Pascal desenvolve
suas próprias questões, mas elas podem ser articuladas: Pascal pensa que
alguém que acredita que Deus existe tem uma existência melhor que alguém
que não acredita. Esse é o interesse de Pascal, há um problema, uma questão,
e já é mais a questão de Deus. Há um tema subjacente, uma transformação de
questões uma dentro da outra.
Deleuze sugere que é o mesmo quando Nietzsche diz "Deus está morto", não é
a mesma coisa que dizer que Deus não existe. Deleuze pergunta: se dizemos
que Deus está morto, à que questão isso se refere, a uma questão que não é a
mesma que quando perguntamos se Deus existe? Ao ler Nietzsche, diz
Deleuze, observamos que não poderia se importar menos com a morte de
Deus, e que está colocando uma outra questão por meio daquela,
especificamente, que se Deus está morto, não há nenhuma razão para que o
homem também não esteja, temos que encontrar algo mais no homem, etc. O
que interessava Nietzsche não era, de forma alguma, se Deus estava morto,
mas toda uma outra coisa.
Esses, diz Deleuze, são questões e problemas, e eles poderiam certamente ser
apresentados na TV ou na mídia, mas criariam uma espécie muito estranha de
programa, sobre essa história subjacente de problemas e questões. Enquanto
nas conversas diárias bem como na mídia, as pessoas permanecem no nível
das perguntas. Deleuze menciona um programa particular [uma vez que esse
programa é póstumo, ele diz], "A hora da verdade" [Deleuze dá uma risada],
todo feito de perguntas do tipo "Madame Veil, você acredita na Europa?". Seria
interessante, argumenta Deleuze, se se perguntasse sobre o problema da
Europa. É a mesma coisa que com a questão da China. Eles constantemente
perguntam sobre preparar a uniformização da Europa, eles se perguntam uns
aos outros sobre isso, sobre como tornar o seguro uniforme, etc. E então, eles
encontram um milhão de pessoas na Place de
lugares, da Holanda, da Alemanha, etc., e os entrevistadores não podem, de
forma alguma, controlar isso, eles convocam especialistas para lhes dizer por
que há tantas pessoas holandesas na Place de
simplesmente rodeiam em torno das verdadeiras questões quando elas
precisariam ser feitas. Deleuze admite que o que está dizendo é um pouco
confuso [ele dá uma risada].
Parnet dá o exemplo de Deleuze que costumava ler os jornais diários, mas não
lê mais Le Monde ou Libération. Ela pergunta se há algo no fato de imprensa
ou a mídia não colocar questões que o desgosta, e Deleuze responde, sim! Ele
tem a sensação de aprender cada vez menos. Ele diz que ele está bastante
disposto a aprender coisas, já que ele não sabe nada, mas uma vez que os
jornais tampouco dizem qualquer coisa, o que se pode fazer? Parnet diz que
ele sempre vê as notícias vespertinas, é o único programa que ele nunca
perde, e pergunta se Deleuze tem uma questão para formular cada vez que ele
vê esse noticiário que não é nunca formulada na mídia. Deleuze diz que ele
não sabe e Parnet diz que ele parece pensar que nunca se colocam questões.
Deleuze diz que ele pensa que, em grande medida, as questões não podem
ser feitas. Aqui Deleuze escolhe um exemplo específico, um recente escândalo
francês que remonta à era de Vichy, a prisão de Paul Touvier [Paul Touvier,
preso em 1989, por crimes contra a humanidade, por enviar 7 judeus a serem
executados, em 29 de junho de 1944, em Rillieux-la-Pape, perto de Lyon, é o
primeiro francês a ser considerado culpado de crimes de guerra e sentenciado
à prisão perpétua, em 20 de abril de 1994. Ele morreu de câncer em julho de
1996. Touvier tinha sido condenado à morte, in absenctia, em 1946, e passou a
maior parte dos próximos 40 anos como fugitivo, vivendo em monastérios
católicos]. Deleuze sugere que as questões são evitadas e deliberadamente
não colocadas. Aparentemente, evitou-se colocar questões a Touvier sobre sua
conduta durante a guerra, uma vez que ele devia ter informações que poderiam
implicar algumas autoridades católicas. Assim, diz Deleuze, todo mundo sabe o
que Touvier sabe, mas há um acordo em não colocar questões, e assim elas
não são colocadas. Isso é conhecido como consenso, diz Deleuze, isto é, um
acordo segundo o qual perguntas simples como "Como você está?" tomam o
lugar de problemas e questões, isto é, perguntas que evitam qualquer questão
real.
Parnet parece querer fazer objeções ao que Deleuze está dizendo, assim ele
diz, vamos tentar um outro exemplo, sobre os reformadores do partido
conservador francês e o aparato político da Direita. Deleuze diz que todo
mundo sabre de que se trata, mas os jornais não dizem uma palavra ao
público. Para Deleuze, esses reformadores colocam uma questão bastante
interessante: é uma tentatia de abalar elementos do aparato do Partido que
estão sempre centralizados em torno de Paris. Especificamente, os
reformadores querem independência regional, algo muito interessante e sobre
o qual ninguém está insistindo. A conexão com questões européias, diz
Deleuze, é que eles querem criar uma Europa não de nações, mas de regiões,
isto é, uma verdadeira unidad regional e inter-regional, em vez de uma unidade
nacional e internacional. Isso é um problema, diz Deleuze, um problema que os
socialistas terão que enfrentar em algum momento, entre tendências
regionalistas e tendências internacionalistas. Mas os aparatos do Partido, isto
é, as federações provinciais, ainda correspondem à estrutura antiga, centrada
em torno de Paris, que conserva um papel extremamente importante.
Assim, Deleuze conclui que os reformadores conservadores constituem um
movimento anti-jacobino, que a Esquerda também terá um. Deleuze sente que
as negociações [pourpalers] deveriam ocorrer em torno disso, mas ninguém faz
isso, eles se recusam até mesmo a fazê-lo porque, quando eles o fazem, eles
se revelam. Portanto, eles apenas respondem a perguntas, que não são nada
mais que conversas sem qualquer interesse. A não ser por raras exceções, a
televisão está condenada a discussões, a perguntas. Para Deleuze, não se
trata nem mesmo de uma questão de enganos deliberados, mas simplesmente
de falta de importância, sem nenhum interesse.
Parnet traz o exemplo de uma jornalista, Anne Saint-Claire, que tenta colocar
boas questões, não perguntas, e Deleuze responde, ótimo, esse é sua tarefa,
ele está seguro de que está muito feliz com ela mesma. À questão de Parnet
sobre por que Deleuze nunca aceitou participar de uma entrevista de televisão,
enquanto Foucault e Serres o fizeram, e se ele está se retirando da vida como
o fez Beckett, Deleuze diz, aqui está a prova, esta entrevista, ele estará na TV!
Mas suas razões para não aceitar está relacionadas a algo que ele já disse: ele
não tem qualquer desejo de ter conversas e interrogatórios com pessoas, algo
que ele não pode suportar particularmente quando ninguém sabe que problema
está sendo levantado. Ele volta ao exemplo de Deus: é uma questão da não-
existência de Deus, da morte de Deus, da morte do homem, da existência de
Deus, da existência de quem quer que seja que acredita em Deus, etc. É uma
confusão, muito cansativo, diz Deleuze. Assim, quando todo mundo tem sua
vez de falar, trata-se da domesticidade em puro estado, com algum
apresentador idiota [présentateur à la con]... Deleuze conclui isso resmungando
"pitié, pitié", "piedade", "piedade"...
Parnet diz que a coisa mais importante é que Deleuze está aqui hoje
respondendo suas pequenas perguntas. Deleuze responde: "sob a condição de
que seja póstumo".
INÍCIO
SPAÇOR de Resistência ESPAALFABETO
Parnet lembra a Deleuze sobre algo que ele disse em uma conferência recente:
a filosofia cria conceitos, e sempre que criamos nós resistimos. Artistas,
diretores de cinema, músicos, matemáticos, filósofos, todos resistem, mas
Parnet pergunta, ao quê exatamente eles resistem? Ela sugere considerar caso
por caso: os filósofos criam conceitos, mas os cientistas criam conceitos?
Deleuze diz, não, trata-se de uma questão de fins, já que, se concordamos
em reservar a palavra "conceito" para a filosofia, será necessário, então, ter
uma outra palavra para noções científicas. Não dizemos de um ou uma artista
que ele ou ela cria conceitos, um músico ou um pintor não cria conceitos.
Assim, para a ciência, precisamos de uma outra palavra. Digamos que um
cientista é alguém que cria funções, não é a melhor palavra: criar novas
funções, por exemplo, Einstein, mas também os grandes matemáticos, físicos,
biólogos, todos criam funções.
Assim, Deleuze pergunta de novo, em que sentido isso é resistência? É mais
claro no caso das artes, ele diz, porque a ciência está em uma posição mais
ambígua, um pouco como o cinema: ela está presa em tantos problemas de
organização, de financiamento, etc., que a porção de resistência [Deleuze não
completa o pensamento]. Mas os grandes cientistas, ele continua, também
colocam uma resistência considerável, se pensamos em Einstein, em muitos
físicos e biólogos, é óbvio. Eles resistem, primeiramente, contra serem
forçados a tomarem certas direções tentadoras e contra as demandas da
opinião popular, isto é, contra todo o domínio da pergunta imbecil. Eles
realmente têm a força para impor seu próprio caminho, seu próprio ritmo, e não
podem ser forçados a fazerem qualquer coisa que se queira que eles façam,
exatamente da mesma forma que não se pode forçar um artista.
Deleuze aborda a questão da criação como resistência com referência a um
escritor que ele leu recentemente e que o afetou muito relativamente a essa
temática. Deleuze diz que um dos grandes motivos na arte e no pensamento é
uma certa "vergonha de ser um home". Deleuze ente que Primo Levi é o artista
e escritos que formulou isso mais profundamente. [Sobre Primo Levi, veja O
que é a filosofia?, e Negociações. Em O que é filosofia?, Deleuze e Guattari
referem-se ao livro de Primo Levi, O afogado e o salvado (?)]. Ele foi capaz, diz
Deleuze, de falar dessa vergonha, em um livro extremamente profundo que ele
escreveu após ter estado nos campos de concentração nazistas. Levi diz que
quando ele foi libertado, o sentimento dominante era de vergonha de ser um
homem. Deleuze considera isso como uma bela expressão e, ao mesmo
tempo, como não sendo absolutamente abstrata, mas bem concreta, essa
vergonha de ser um homem. Mas Deleuze insiste que essa frase não significa
certas idiotices que algumas pessoas gostariam de atribuir a ela. Não significa
que somos todos assassinos, que somos todos culpados do nazismo. Levi diz
que não significa que os carrascos e as vítimas são iguais, e Deleuze sente
que não deveríamos ser obrigados a acreditar nisso, não deveria haver
nenhuma equação entre os carrascos e as vítimas.
Assim, a vergonha de ser um homem, continua Deleuze, não significa que
somos todos iguais, ou que estamos todos comprometidos. Significa diversas
coisas, um sentimento muito complexo, não unificado. Significa como puderam
alguns humanos, alguns humanos, Deleuze insiste, isto é, outros que não eu,
terem feito isso? E, em segundo lugar, como eu, entretanto, tomei partido?
Deleuze diz que isso não significa que cada um de nós se tornou um carrasco,
mas que ainda assim nós tomamos partido para poder sobreviver, e há uma
vergonha e ter sobrevivido no lugar de amigos que não sobreviveram. Assim, a
vergonha de ser um homem é um sentimento complexo, e Deleuze sente que
na base de toda arte, há esse sentimento muito forte da vergonha de ser um
homem que tem como resultado o fato de que arte consiste em libertar a vida
que os homens aprisionaram. Deleuze diz que os homens nunca cessaram de
aprisionar a vida, de matar a vida - "a vergonha de ser um homem". Assim, o
artista é aquele que liberta uma vida poderosa, uma vida que é mais que vida
pessoa, não a vida dele ou dela.
Depois que uma nova fita tem início, Parnet traz Deleuze de volta a essa idéia
do artista e da resistência, o papel da vergonha de ser um homem, da arte
libertando a vida dessa prisão de vergonha, mas algo muito diferente da
sublimação. Deleuze insiste que isso significa extrair a vida, a libertação da
vida e, de forma alguma, algo abstrato. Deleuze pergunta o que é um grande
personagem de romance. Não é um personagem tomado de empréstimo ao
real e até mesmo exagerado: ele mencionar o Charlus, da Remembrance, de
Proust, que não é Mostesquiou [amigo de Proust] da vida real, nem mesmo
uma reprodução exagerada, feita pela imaginação brilhante de Proust. Deleuze
diz que se trata de forças de vida fantásticas, por mais que dêem errado. Um
personagem de ficção integrou a vida em si mesmo... Deleuze diz que se trata
de uma espécie de gigante, um exagero em relação à vida, mas não um
exagero em relação à arte, já que a arte é a produção desses exageros, e é
apenas por seu único existir que ela é resistência. Ou, em outra direção,
ligando com o tema desenvolvido em "A de Animal", escrever é sempre
escreverpor animais, isto é, não para eles, mas em seu lugar, fazendo o que
os animais não podem, escrever, libertar a vida das prisões que os humanos
criaram e é isso que é resistência. Isso é, obviamente, o que os artistas fazem,
diz Deleuze, e ele acrescenta: não existe arte que não seja também uma
libertação das forças da vida, não existe uma arte da morte.
Parnet observa, entretanto, que a arte não é suficiente. Primo Levi acabou por
cometer suicídio muito mais tarde. Deleuze responde, sim, mas ele cometeu
suicídio pessoalmente, ele não agüentava mais, assim ele cometeu suicídio
relativamente à sua vida pessoa. Mas, continua ele, há quatro ou doze ou cem
páginas de Primo Levi que permanecerão resistências eternas. Assim, é dessa
forma que acontece.
Deleuze persegue o tema da vergonha de ser um homem, não no sentido
grandioso de Primo Levi. Se é que ousamos dizer algo desse tipo, para cada
um de nós, na vida cotidiana, há acontecimentos minúsulos que nos inspiram
essa vergonha de ser um homem. Testemunhamos uma cena em que alguém
foi realmente extremamente vulgar, nós não fazemos um drama disso, mas nós
ficamos incomodados, incomodados pelo outro, e por nós mesmos porque não
podemos suportar isso, quase como uma espécie de comprometimento. Mas
se protestamos, dizendo que o que você está dizendo é baixo, vergonhoso, nós
fazemos um grande drama disso, e ficamos envolvidos. Embora não se
compare, de forma forma, com Auschwitz, sentimos, mesmo nessa escala
minúscula, uma pequena vergonha de ser um homem. Se não sentimos essa
vergonha, não há qualquer razão para fazer arte.
Parnet pergunta se quando se cria, precisamente quando se é um artista,
sente-se os perigos que nos rodeiam em toda parte? Deleuze diz, sim,
obviamente, mesmo em filosofia - como Nietzsche disse, uma filosofia que
danifique e resista à estupidez. [Sobre resistência e estupidez, veja Deleuze,
Nietzsche e a filosofia, pp. ]. Mas se a filosofia não existisse, não poderíamos
adivinhar o nível de estupidez que haveria, já que a filosofia impede que a
estupidez seja tão grande quanto seria se não houvesse filosofia. Esse é o
esplendor da filosofia, não temos nenhuma idéia de como as coisas seriam,
repete Deleuze, exatamente da mesma forma que se não houvesse nenhuma
arte, não poderíamos imaginar como seria a vulgaridade das pessoas...
Quando dizemos que "criar é resistir", trata-se de uma afirmação de fato; o
mundo não seria o que se não fosse pela arte, diz Deleuze, as pessoas não
agüentariam mais. Não é que elas leiam filosofia, é a própria existência da
filosofia que impede que as pessoas sejam estúpidas e bestas como seriam se
não houvesse filosofia.
Parnet pergunta o que Deleuze pensa quando as pessoas anunciam a morte
do pensamento, a morte do cinema, a morte da literatura, [Deleuze desata em
uma risada quando ela pergunta:] não parece uma piada? Sim, diz Deleuze,
não existe nenhuma morte, há assassinatos, muito simplesmente. Ele sugere
que talvez o cinema será assassinado, muito possivelmente, mas não existe
nenhuma morte de causas naturais, por uma simples razão: enquanto não
houver nada para absorver e assumir a função da filosofia, a filosofia ainda terá
todo o motivo para continuar vivendo, e se alguma outra coisa assumir a
função da filosofia, então será alguma outra coisa diferente da filosofia. Se
dizemos que a filosofia significa criar conceitos e, por meio disso, prejudicar e
impedir a estupidez, o que é, então, pergunta Deleuze, que morre na filosofia?
Ela pode ser bloqueada, censurada, assassinada, mas ela temuma função, ela
não vai morrer. Deleuze diz que a morte da filosofia sempre pareceu ser uma
idéia imbecil, e não é porque ele esteja ligado à filosofia que ela não morrerá.
Deleuze simplesmente pergunta-se sobre essa gracinha de idéia sobre a morte
da filosofia, que é apenas uma maneira de dizer que as coisas mudam.
Mas, pergunta ele, o que vai substituir a filosofia? Talvez alguém diga: não
devemos mais criar conceitos, e assim, conclui Deleuze, vamos deixar a
estupidez dominar, está bem, são os idiotas que querem matar a filosofia.
Quem vai criar conceitos? A ciência da informação? Os agentes de publicidade
que tomaram conta da palavra "conceito"? Está bem, vamos ter conceitos de
publicidade, que é o conceito de uma marca de macarrão, diz Deleuze. Eles
não correm o risco de terem uma grande competição por parte da filosofia
porque a palavra "conceito", ele acredita, não está mais sendo utilizada da
mesma maneira. Mas é a publicidade que é apresentada como o verdadeiro
rival da filosofia uma vez que eles nos dizem: nós, publicitários, estamos
inventando conceitos. Mas, diz Deleuze, o conceito proposto pela ciência da
informação, pelos computadores, é simplesmente ridículo o que eles chamam
de conceito.
Parnet pergunta se podemos dizer que Deleuze, Guattari e Foucault formam
redes de conceitos que funcionam como redes de resistência, como uma
máquina de guerra contra os modos dominantes de pensamento. Deleuze
parece visivelmente constrangido e diz, sim, por que não? Seria muito bom se
fosse verdade. Na seqüência, ele reflete sobre as redes: se não pertencemos a
uma "escola" - e, para Deleuze, essas "escolas" de pensamento não parecem
nada boas -, existe apenas o regime de redes, de cumplicidades, algo que
existiu em cada período, por exemplo, o que chamamos de Romantismo -
alemão ou em geral -, e há redes hoje também, suspeita Deleuze. Parnet
pergunta se se trata de redes de resistência e Deleuze diz, sim, na medida em
que a função da rede é resistir e criar. Parnet diz que, por exemplo, Deleuze
considera-se ao mesmo tempo famoso e clandestino, como vivendo em uma
espécie de clandestinidade [Deleuze dá uma risada] da qual ele se orgulha.
Deleuze diz que ele não se considera nada famoso, nem clandestino, mas que
seria, na verdade, imperceptível. [Neste ponto, Deleuze parece hesitar,
começando frases, mas não concluindo o pensamento]. Mas se é imperceptível
porque se pode... Essas questões são praticamente pessoais... O que ele quer
é fazer seu trabalho, que as pessoas não o incomodem e não o façam perder
tempo e, ao mesmo tempo, ele quer ver pessoas, ele precisa disso, como todo
mundo, ele gosta de pessoas, ou de um pequeno grupo de pessoas que ele
gosta de ver. Mas ele insiste que ele não quer que isso constitua nenhum
problema, ele só quer ter relações imperceptíveis com pessoas imperceptíveis,
é isso que é a coisa mais bela no mundo. Deleuze sugere que somos todos
moléculas, uma rede molecular.
Parnet pergunta se existe uma estratégia em filosofia, por exemplo, quando ele
escreveu aquele ano em seu livro sobre Leibniz, ele o fez estrategicamente?
Deleuze sorri, perguntando-se em voz alta o que significa a palavra
"estratégia", talvez que não escrevemos sem uma certa necessidade. Mas ele
diz, se não existe nenhuma necessidade de criar um livro, que isso não é
sentido fortemente pelo autor, então ele não deveria fazê-lo. Assim, quando
Deleuze escreveu sobre Leibniz, foi por necessidade, porque para ele havia
chegado o momento - uma coisa muito comprida para explicar em detalhe - de
falar sobre Leibniz e a dobra. E quanto à dobra, acontecia que, para Deleuze,
ela estava fundamentalmente ligada a Leibniz. Ele pode dizer isso para cada
livro que ele escreveu: qual era a necessidade em cada período.
Parnet continua a falar sobre isso: além do impulso da necessidade que leva
Deleuze a escrever, ele pergunta sobre sua movimentação, depois de escrever
filosofia e voltar à história da filosofia, depois dos livros sobre cinema e depois
de livros como Anti-Édipo e Mil platôs. Deleuze diz que não houve nenhuma
volta da filosofia, e essa foi a razão pela qual ele, anteriormente, respondeu às
perguntas dela de forma bastante exata. Ele escreveu um livro sobre Leibniz
porque, para ele, tinha chegado o momento de estudar o que era uma dobra.
Ele faz história da filosofia quando ele tem necessidade, isto é, quando ele
encontra e vive uma noção que já está ligada a um filósofo. Quando ele ficou
animado sobre a noção de "expressão", ele escreveu um livro sobre Espinosa,
porque Espinosa é o filósofo que levou a noção de "expressão" a um nível
extraordinário. Assim, parecia-lhe óbvio que seria por meio de Leibniz, e ocorre
que ele também encontra noções que não estão ainda dedicadas a um filósofo,
assim, nesse caso Deleuze não faz história da filosofia. Mas ele não vê
qualquer diferença entre escrever um livro sobre história da filosofia e um livro
sobre filosofia, assim é dessa forma, diz ele, que ele segue seu próprio
caminho.
EINÍCIO
SPAÇOS de Style-Estilo ESPAALFABETO
Parnet anuncia o título e Deleuze exclama: "ah, bom!". Parnet pergunta o que é
o estilo. Ela lembra que em Diálogos, Deleuze diz que o estilo é a propriedade
daqueles dos quais se diz que não têm nenhum estilo. Ele diz isso de Balzac.
Assim, o que é o estilo? Deleuze diz que não se trata de um questão trivial, e
Parnet responde, não, foi por isso que ela fez a pergunta de forma tão rápida!
[Na verdade, em Diálogos, Deleuze não faz qualquer referência a um escritor
específico. Em vez disso, ele diz: "Gostaria de dizer o que é o estilo. Ele
pertence a pessoas dos quais normalmente dizemos: "Eles não têm nenhum
estilo". Não se trata deum estrutura de significação, nem de uma organização
refletida, nem de uma inspiração espontânea, nem de uma orquestração, nem
de uma pequena peça musical. Trata-se de um agenciamento, um
agenciamento de enunciação. Um estilo significa conseguir gaguejar em sua
própria língua".]
Deleuze ri, depois diz, escuta, isso é o que posso dizer para compreender o
que é estilo: antes de mais nada, é melhor não saber absolutamente nada
sobre lingüística. A lingüística tem causado muito prejuízo, diz ele; por quê? Há
uma oposição - Foucault o disse muito bem - e trata-se mesmo de sua
complementaridade, entre lingüística e literatura. Contrariamente ao que muitos
dizem, elas, de forma alguma, encaixam. É porque, para a lingüística, diz
Deleuze, a língua [langue] é sempre um sistema em equilíbrio a partir do qual
pode-se criar uma ciência. E o resto, as variações, são colocadas não mais no
lado da linguagem, mas no lado da fala [parole]. Quando escrevemos,
sabemos perfeitamente que a língua é um sistema sobre o qual os fisicos
diriam que é um sistema muito distante do equilíbrio, um sistema em
desiquilíbrio permanente, de forma que não existe qualquer diferença de nível
entre língua e fala, mas a língua é constituída por todo tipo de correntes
heterogêneas em desiquilíbrio mútuo.
Assim, ele continua, o que é o estilo de um grande autor? Deleuze diz que ele
pensa que há duas coisas no estilo - ele observa que ele está respondendo
rapidamente e claramente, mas que ele está envergonhado porque está
demasidamente abreviado. O estilo é composto de duas coisas: submetemos a
língua na qual falamos e escrevemos a um certo tratamento, não um
tratamento que seja artificial, voluntário, etc., mas um tratamento que mobiliza
tudo, a vontade do autor, mas também seus desejos e necessidades. Assim,
submetemos a língua a um tratamento sintático e original, que poderia ser...
Aqui Deleuze indica que eles estão voltando ao tema da letra "A de Animal":
um tratamento que poderia fazer a língua gaguejar e Deleuze diz, não que nós
mesmos gaguejemos, mas fazer a língua gaguejar. Ou, e não se trata da
mesma coisa, fazer a língua balbuciar.
Ele toma o exemplo dos grandes estilistas: Gherasim Luca, um poeta. Deleuze
sugere que geralmente ele cria gaguejando, não a sua própria fala, mas faz a
língua gaguejar. Outro exemplo é Charles Péguy, de forma muito estranha, diz
Deleuze, porque Péguy é um certo tipo de personalidade sobre o qual
esquecemos que, acima de tudo, está entre os grandes artistas, e ele é
totalmente louco. Deleuze dia que nunca ninguém escreveu como Péguy, e
nunca ninguém escreverá com Péguy, e sua escrita está entre os grandes
estilos da língua francesa, um dos grandes criadores da língua francesa. O que
ele fez? Não podemos dizer que seu estilo é um gaguejar: em vez disso, ele
faz a sentença se desenvolver a partir de seu meio: em vez de fazer com que
as sentenças se sigam umas às outras, ele repete a mesma sentença com
acréscimo no seu meio, o qual, por sua vez, gerará um outro acréscimo, etc.
Ele faz a sentença proliferar a partir de seu meio, por inserções. Trata-se de
um grande estilo, conclui Deleuze.
Assim, há o primeiro aspecto: fazer com que a língua seja submetida a um
incrível tratamento. É por isso que um grande estilista não é alguém que
conserva a sintaxe, mas é um criador de sintaxe. Deleuze diz que ele não pode
deixar de citar a admirável fórmula de Proust: obras de arte são sempre
escritas em uma espécie de língua estrangeira. Um estilista, diz Deleuze, é
alguém que cria uma língua estrangeira em sua própria língua. [Deleuze e
Parnet fornecem a referência dessa citação na página .... de Diálogos, do livro
de Proust, Contra Sainte-Beuve]. É verdadeiro a respeito de Céline, de Péguy.
Ele continua: ao mesmo tempo que esse primeiro aspecto - fazer com que a
sintaxe sofra uma deformação, um tratamento de contorsão, mas necessário,
que constitui algo como uma língua estrangeira na língua na qual escrevemos,
-- o segundo aspecto consiste em, por meio desse mesmo processo, levar toda
a língua, integralmente, a uma espécie de limite, à fronteira que a separa da
música. Produzimos um tipo de música. Se somos bem sucedidos, é com
essas duas coisas, e é necessário fazê-lo, trata-se de um estilo, ele pertence a
todos os grandes estilistas. Tudo isso acontece de uma vez só: cavar no
interior da língua uma língua estrangeira, levar toda a língua a uma espécie de
limite musical: é isso o que significa ter um estilo.
Parnet pergunta rapidamente se Deleuze acha que ele tem um estilo..., e ele
cai numa gargalhada, dizendo, "Oh! a perfídia!". Parnet continua, ... porque ela
vê uma mudança em relação a seus primeiros livros. Deleuze diz que a prova
do estilo está em sua variabilidade, e que geralmente caminhamos em direção
a um estilo cada vez mais sóbrio. Isso não significa menos complexo, insiste
Deleuze. Ele pensa imediatamente em um dos escritores que ele admira muito
do ponto de vista do estilo, Jack Kerouac. No final de sua carreira, diz Deleuze,
a escrita de Kerouac era como um desenho japonês de linha, uma pura linha,
alcançando uma sobriedade, mas isso realmente implica, então, a criação de
uma língua estrangeira no interior da língu. Deleuze também pensa em Céline,
e ele acha estranho quando as pessoas ainda elogiam Céline por haver
introduzido a linguagem falada na linguagem oral [em Voyage au bout de la
nuit]. Deleuze acha isso estúpido porque, na verdade, é preciso um tratamento
escrito completo na língua, devemos criar uma língua estrangeira no interior da
língua a fim de obter, por meio da escrita, o equivalente da língua falada.
Assim, Céline não introduziu o falado na língua, é simplesmente estúpido dizer
isso, exclama Deleuze. Mas quando Céline recebia um elogio, continua
Deleuze, ele sabia que ele estava muito distante do que ele queria criar, assim
ele começou seu segundo romance. Em Mort à crédit, ele chega mais perto,
mas quando o livro é publicado e lhe dizem que ele havia mudado seu estilo,
ele sabia outra vez que ele estava distante do que ele queria e assim o que ele
queria ele vai alcançar com Guignhol's Band, no qual, de fato, a linguagem é
levada a um tal limite que está próxima da música. Não é mais um tratamento
da língua que cria uma língua estrangeira, mas toda uma linguagem levada a
seu limite musical. Assim, por sua própria natureza, o estilo muda, ele tem sua
variação.
Parnet menciona que com Péguy, pensamos freqüentemente no estilo musical
de Steve Reich, com o aspecto repetitivo, mas Deleuze diz que Péguy é um
estilista muito maior que Reich. Parnet observa que Deleuze ainda não
respondeu à sua "perfídia": se ele acha que ele tem um estilo. Deleuze diz que
ele gostaria de ter, mas pergunta-lhe o que ela quer que ele diga. Para ser um
estilista, diz ele, temos já que viver o problema do stilo. Ele diz que ele pode
responder mais modestamente dizendo que ele vive o problema. Ele diz que
ele não escreve dizendo para si mesmo que ele vai lidar com a questão do
estilo mais tarde. Deleuze diz que ele está muito consciente que não obterá o
movimento dos conceitos que ele quer se a escrita não passar pelo estilo, e ele
diz que ele está pronto para reescrever a mesma página dez vezes.
Depois que a fita muda, Parnet retoma essa questão outra vez, dizendo que
para Deleuze, o estilo é uma espécie de necessidade para a composição
daquilo que ele escreve, que a composição entra na sua escrita de uma forma
bem primordial. Deleuze concorda completamente, refazendo a questão dessa
forma: a composição de um livro é já uma questão de estilo? E ele responde,
sim, inteiramente. A composição de um livro não pode ocorrer de forma
antecipada, mas ao mesmo tempo que o livro é escrito. Naquilo que Deleuze
escreveu, "se eu puder invocar isso", ele diz, há dois livros que parecem ter
sido compostos. Deleuze diz que ee sempre atribuiu grande importância à
própria composição, por exemplo, em Lógica do sentido, composto por séries,
constituindo para Deleuze verdadeiramente uma espécie de composição serial.
Depois, em Mil platôs, trata-se de uma composição por platôs, platôs
constituídos por coisas. Mas Deleuze vê esses dois livros quase como duas
composições musicais. A composição, diz ele, é um elemento fundamental do
estilo.
Parnet pergunta sobre algo que ele disse anteriormente: se no modo de
expressão de Deleuze ele está agora mais próximo do que ele queria do que
vinte anos atrás, ou se se trata de uma coisa completamente diferente. Deleuze
diz que atualmente no que ele está fazendo, ele sente que, naquilo que ainda
não está concluído, ele está chegando mais perto, que ele está capturando
algo que ele estava buscando e que não havia encontrado antes. Parnet
sugere que seu estilo é não apenas literário, que se sente claramente o estilo
em todos os domínios. Por exemplo, diz ela, Deleuze vive com uma família
elegante, seu amigo Jean-Pierre também é bastante elegante, e Deleuze
parece ser bastante sensível a essa elegância.
Deleuze diz, primeiramente, que ele se sente um pouco excedido. Ele diz que
ele gostaria de ser elegante mas sabe muito bem que não o é. Para ele, a
elegância consiste já em perceber o que é a elegância. Tem que ser assim
uma vez que há pessoas que não conseguem perceber isso, de jeito nenhum,
e para as quais o que elas chamam elegância não é, de forma alguma,
elegante. Assim, uma certa apreensão do que é a elegância faz parte da
elegância. Essa elegância que impressiona Deleuze é um domínio como
qualquer outro, que exige uma aprendizagem, para o qual se tem um certo
dom. Ele, então, pergunta a Parnet por que ela lhe perguntou isso. Ela diz que
a questão do estilo está em todos os domínios. Ele diz, naturalmente, mas esse
aspecto não é parte da grande arte. Deleuze faz uma pausa, depois diz, o que
é importante - além da elegância que ele aprecia muito - são todas essas
coisas no mundo que emitem signos. Assim, uma grande elegância, tanto
quanto a vulgaridade, emite signos, e é algo mais que apenas a elegância que
Deleuze considera importante: é a própria emissão de signos. É por isso que
ele sempre gostou e ainda gosta tanto de Proust, pela mundaneidade, pelas
relações mundanas. Aquilo que se conhece como "gafe", por exemplo, trata-se
de uma fantástica emissão de signos. Trata-se de uma não-compreensão de
um signo, signos que as pessoas não compreendem. A vida de sociedade
existe como um milieu da proliferação de signos vazios, mas é também a
velocidade de sua emissão, a natureza de sua emissão. Isso se liga de novo
com o mundo dos animais porque os mundos dos animais também são
emissões de signos. Os animais e os "animais" mundanos são os mestres dos
signos.
Parnet diz que, embora Deleuze não saia muito de casa, ele sempre se
mostrou mais favorável às noites mundanas que às conversas amenas.
Deleuze diz, naturalmente, porque para ele, nos meios mundanos, as pessoas
não vão discutir, essa vulgaridade não faz parte daquele meio. Em vez disso,
move-se completamente em uma certa leveza, isto é, em uma evocação
extraordinariamente rápida, em velocidades de conversas. Outra vez, diz
Deleuze, trata-se de emissões de signos muito interessantes.
INÍCIO
SPAÇOT de Tênis ESPAALFABETO
Parnet começa afirmando que Deleuze sempre gostou do tênis. Há uma
conhecida história sobre Deleuze quando ele era criança: ele correu atrás do
autógrafo de um grande tenista sueco que ele havia avistado e, na verdade, o
que ele acabou conseguindo foi o autógrafo do rei da Suécia. Deleuze diz que
não foi nenhum engano, ele sabia de quem se tratava, o rei já era mais ou
menos centenário. Mas Deleuze confirma ter pedido o autógrafo do rei da
Suécia. Há uma foto de Deleuze no Le Figaro, um menino se aproximando do
velho rei da Suécia para pedir um autógrafo. Parnet pergunta se Deleuze não
estava atrás do tenista e Deleuze diz que se tratava de Borotras, não se tratava
de um grande tenista, mas um dos guarda-costas do rei, que jogava tênis com
o rei, que lhe dava aulas de tênis. Assim, ele tentou empurrar Deleuze algumas
vezes para impedi-lo de chegar demasiadamente perto do rei, mas o rei era
simpático e Borotras também acabou se tornando simpático.
Parnet pergunta se o tênis é o único esporte que ele vê na televisão e
Deleuze diz, não, ele adora futebol, assim é o futebol e não tênis. Parnet
pergunta se ele jogava tênis e Deleuze diz, sim, bastante até a guerra, de
modo que isso faz dele uma vítima da guerra! Parnet pergunta que efeito isso
tem sobre seu corpo, quando se pratica muito um esporte, ou quando se deixa
de praticá-lo, se existem coisas que mudam. Deleuze diz que ele não acha
isso, ao menos não no caso dele. Ele diz que ele não o transformou em um
ofício. Em 1939, ele tinha 14 anos e parou de jogar tênis, assim não se tratava
de nada sério. Parnet pergunta se ele jogava bem e Deleuze diz, sim, para um
garoto de 14 anos ele jogava bastante bem, mas ele um tanto baixo. Parnet diz
que ela também ouviu dizer que praticou um pouco de boxe, e Deleuze diz, um
pouco, mas ele acabou se machucando, assim ele parou em seguida, mas,
sim, ele tentou praticar um pouco de boxe.
Parnet pergunta se ele acha que o tênis mudou muito em relação à época de
sua juventude e Deleuze diz, sim, naturalmente, como em todos os esportes,
há milieus de variação, e aqui voltamos à questão do estilo. Deleuze acha
muito interessante a questão das atitudes do corpo. Há uma variação de
posições do corpo sobre espaços de maior ou menor extensão e teríamos que
categorizar as variáveisna história dos esportes. Deleuze vê várias. Variáveis
de tática: no futebol, a tática mudou muito desde a época de sua infância. Há
posições variáveis para a postura do corpo: houve um momento, diz Deleuze,
em que ele esteve muito interessado no lançamento de esfera [? shot put], não
para que ele próprio praticasse, mas a conformação do lançador de esferas
desenvolveu-se, em determinado momento, com uma rapidez extrema. Tornou-
se uma questão de força: como, com lançadores realmente fortes, podia-se
recuperar a velocidade e como, com malhadores [de corpo] voltados para a
velocidade, podia-se recuperar a força? Deleuze acha essa questão muito
interessante. Ele diz que o sociólogo Marcel Mauss fez uma série de estudos
sobre as posições do corpo em diferentes civilizações, mas o esporte é um
domínio da variação de posições, algo muito fundamental.
No tênis, mesmo antes da guerra, lembra Deleuze, as posições não eram as
mesmas, e algo que o interessa muito, de novo em relação com o estilo, é a
questão dos campeões que são verdadeiros criadores. Deleuze diz que há dois
tipos de campeões, que não têm o mesmo valor para ele, os criadores e os
não-criadores. Os não-criadores são aqueles que mantêm o estilo pre-existente
e têm uma força inigualável, por exemplo, Lendl. Deleuze não considera Lendl
como sendo fundamentalmente um criador no tênis. Mas existem, então, os
grandes criadores, mesmo nos níveis muito simples, aqueles que inventam
novos lances e introduzem novas táticas. E atrás deles vêm uma multidão de
toda espécie de seguidores, mas os grandes estilistas são inventores, algo que
certamente encontramos em todos os esportes.
Deleuze se pergunta qual foi o grande ponto de virada no tênis e ele acha que
foi a sua proletarização, de uma forma relativa, naturalmente. Ele tornou-se um
esporte de massa, uma espécie de executivos jovens com pretensões de
classe operária, mas Deleuze sente que podemos chamar isso de
proletarização do tênis. E, naturalmente, continua ele, há abordagens mais
profundas para explicar tudo isso, mas isso não teria ocorrido se não tivesse
havido, ao mesmo tempo, a chegada de um gênio, Bjorn Borg, que tornou isso
possível. Por quê? Porque, de acordo com Deleuze, ele trouxe um estilo
particular, e ele teve que criar um tênis de massa a partir do nada. Então, atrás
dele veio uma multidão de campeões muito bons, mas não criadores, por
exemplos, tipo Vilas, etc. Assim, Borg tem um apelo para Deleuze, sua cabeça
como a de Cristo, a postura de Cristo, essa extrema dignidade, esse aspecto
que o tornou tão respeitado entre todos os jogadores.
Depois de uma mudança de fita, Parnet pergunta se Deleuze assistiu muitas
partidas de tênis, e ele começa a responder, mas acaba retornando à questão
do Borg como um personagem como Cristo, que criou o tênis de massa, e com
isso, tratou-se de uma criação total de um novo jogo. Depois, vieram correndo
atrás todas as espécies de jogadores do tipo Vilas, que impuseram um estilo
em geral soporífico no jogo, enquanto que com Borg, sempre redescobrimos o
tipo de jogador que ouve os elogios, mas que sente que está longe de fazer o
que ele queria fazer. Deleuze sente que Borg mudava deliberadamente:
quando ele estava seguro de suas jogadas, elas não o interessavem mais,
assim seu estilo desenvolveu-se extraordinariamente, enquanto o jogador
comum se apega à mesma e velha rotina. Deleuze diz que McEnroe deve ser
vito como o anti-Borg.
Parnet pergunta qu tipo de estilo Borg impôs e Deleuze descreve-o como:
situado no fundo da quadra, o mais longe possível, rodopiando, a bola
colocada bem acima da rede. Deleuze diz que qualquer "proletário" podia
entender esse jogo, não que ele fosse capaz de sair-se bem [Deleuze e Parnet
dão risadas]. Assim, o princípio mesmo - profundidade da quadra, rodopio,
bola alta - é o oposto dos princípios aristocráticos. Trata-se de princípios
populares, mas que gênio era preciso ter para isso!, diz Deleuze, exatamente
como Cristo, um aristocrata que vai ao povo. Deleuze admite que ele
provavelmente está dizendo algo idiota, mas ele achou a jogada Borg
impressionante, a obra de um grande jogador.
E com McEnroe, continua ele, era um puro aristocrata, metade egípcio,
metade russo, saque egípcio, alma russa, inventando jogadas que ele sabia
que ninguém podia seguir. Assim, ele era um aristocrata que não podia ser
seguido. Ele inventou algumas jogadas prodigiosas, uma delas consistia em
colocar a bola, muito estranha, nem mesmo tocá-la, apenas colocá-la. E ele
desenvolveu um movimento de saque que era desconhecido, tanto o saque
dele quanto o de Borg foram completamente transformados. Outro grande
jogador, mas sem a mesma importância, é o outro americano, Connors, que
também tinha um princípio aristocrático, argumenta Deleuze: a bola mal acima
da rede, um princípio aristocrático muito estranho, e tambémbatendo enquanto
estava numa posição de desiquilíbrio. Deleuze diz que Connors nunca jogou
com tanto gênio quanto quando ele estava completamente em desiquilíbrio.
Deleuze diz que há uma história do esporte, e tem que ser contada exatamente
como na arte, a evolução, os criadores, os seguidores, as mudnças, os devires
do esporte.
Parnet traz Deleuze de volta à sua afirmação sobre ter assistido algo, e ele
tenta lembrar a quê ele se referia. Ele diz que é algo difícil de especificar o quê
ou quando algo realmente teve origem [em um esporte], embora Deleuze
lembre algo particular. Antes da guerra, havia alguns australianos - isto faz
com que Deleuze especule sobre as questões das origens nacionais, por que
os australianos introduziram a two-handed back swing, ao menos tanto quanto
ele se lembra. Uma jogada que o impressionou quando ele era criança era algo
que teve um grande impacto, quando eles viam que o oponente não conseguia
atingir a bola, e não podiam compreender por quê. Deleuze diz que se tratava
de umgolpe bastante suave e depois de pensar seriamente sobre isso, eles
viram que era a réplica do saque. Quando o oponente dava o saque, o jogador
o retornava com uma batida bastante suave, assim ele a recebia como uma
bola a meio-caminho que ele não podia devolver. Assim, tratava-se de uma
estranha resposta, porque Deleuze não podia compreender muito bem por qual
motivo ela funcionava. Na opinião de Deleuze, o primeiro a ter sistematizado
isso foi um grande jogador australiano, que não teve uma grande carreira nas
quadras de terra, chamava-se Bromwich, foi um pouco antes da guerra ou um
pouco depois (Deleuze diz que ele não lembra exatamente). Mas ele lembra,
isto sim, que quando ele criança ou jovem, ele se impressionava com essa
jogada que agora se tornou clássica. Tanto quanto ele saiba, foi a invenção de
uma resposta que a geração de Borotras não conhecia ainda, apenas
respostas simples.
Para terminar com o tema do tênis, Parnet pergunta se Deleuze pensa que
McEnroe continuará a fazer o que ele faz, quando ele ofende o juiz, na verdade
ofendendo mais a ele próprio que o juiz, e se isso é uma questão de estilo, e se
ele, McEnroe, está descontente com essa forma de expressão? Deleuze diz,
sim, é uma questão de estilo porque faz parte integral do estilo de McEnroe.
Trata-se de uma espécie de recarga nervosa, exatamente da mesma forma
que um orador fica irritado, enquanto há oradores que permanecem calmos e
distantes. Assim, o estilo de McEnroe tem isso como um dos elementos, é a
alma, como se diz em alemão, a Gemut.
INÍCIO
SPAÇOU de Uno ESPAALFABETO
Parnet começa dizendo que a filosofia e a ciência supostamente se preocupam
com "universais". Entretanto, Deleuze sempre diz que a filosofia deve
permanecer constantemente em contato com singularidades. Ela pergunta: não
há aí um paradoxo? Deleuze diz que não existe nenhum paradoxo porque a
filosofia, e mesmo a ciência, não tem estritamente nada a ver com universais.
Trata-se de um lugar-comum, que vem da opinião geral, isto é, a opinião sobre
a filosofia que se preocupa com universais, e que a ciência se preocupa com
fenômenos universais que sempre podem ser reproduzidos, etc. Deleuze
sugere que consideremos a afirmação: todos os corpos caem. O que é
importante, insiste Deleuze, não é que todos os corpos caem, mas, antes, a
própria queda e as singularidades da queda. Mesmo que as singularidades
científicas sejam reproduzíveis - por exemplo, singularidades matemáticas em
funções, ou singularidades físicas, ou singularidades químicas, etc. -, está
bem, mas e daí? Deleuze argumenta que se trata de fenômenos secundários,
processos de universalização, mas a ciência trata não de universais, mas de
singularidades: quando um corpo muda seu estado, do estado líquido para o
estado sólido, etc.
Deleuze continua, argumentando que que a filosofia não está preocupada
com o uno, com o ser. Sugerir isso é uma estupidez. Em vez disso, ela está
também preocupada com singularidades. Finalmente, nós quase sempre
descobrimos multiplicidades, que são agregados de singularidades. A fórmula
para as multiplicidades e para agregados de multiplicidades é n-1, isto é, o Uno
é aquilo que deve ser sempre subtraído. Assim, Deleuze sustenta que há dois
erros que não se pode fazer: a filosofia não está preocupada com universais.
Existem três tipos de unversais: universais de contemplação - Idéias com I
maiúsculo; universais de revelação; e universais de comunicação, o último
refúgio da filosofia dos universais [Deleuze e Guattari desenvolvem essa noção
em O que é a filosofia?, cap. 1; sobre universais, ver pp........] Habermas gosta
desses universais da comunicação [Deleuze dá uma gargalhada].
Isto significa que a filosofia não é definida nem como contemplação, nem
como reflexão, nem como comunicação. Em todos os três casos, é realmente
cômico, realmente burlesco. A filosofia que contempla, ok, diz Deleuze: ela faz
todo mundo rir. A filosofia que reflete não nos faz rir, mas é ainda mais estúpida
porque ninguém precisa da filosofia para refletir. Os matemáticos não precisam
da filosofia para refletir sobre matemática. Um artista não precisa buscar a
filosofia para refletir sobre a pintura ou a música. Boulez não precisa da
filosofia para refletir sobre a música. Acreditar que filosofia seja uma reflexão
sobre qualquer coisa significa desprezar tudo. E, afinal, sobre o quê supõe-se
que a filosofia reflete?, pergunta Deleuze. Quanto à filosofia ser a restauração
de um consenso na comunicação a partir da base dos universais na
comunicação, essa é a idéia mais engraçada que já ouvi desde... Pois a
filosofia não tem estritamente nada a ver com comunicação. A comunicação é
perfeitamente auto-suficente e toda essa coisa sobre consenso e opinião é a
arte das perguntas.
Deleuze reitera que a filosofia consiste em criar conceitos, o que não significa
comunicar. A arte não é comunicativa ou reflexiva, argumenta Deleuze, nem a
arte nem a ciência nem a filosofia são contemplativas ou reflexivas ou
comunicativas. Elas são criativas, simplesmente. Assim, conclui ele, a fórmula
n-1 suprime a unidade, suprime o universal. Parnet replica que Deleuze sente,
portanto, que os universais não têm nada a ver com a filosofia e Deleuze sorri,
balançando sua cabeça.
INÍCIO
SPAÇOV de Viagens ESPAALFABETO
Parnet anuncia esta letra dizendo que é a demonstração de um conceito como
um paradoxo porque Deleuze inventou o conceito de nomadismo, mas ele
odeia viajar. Por quê, em primeiro lugar, ele odeia viajar? Deleuze diz que ele
não gosta das condições de viagem para um intelectual pobre. Talvez se ele
viajasse de forma diferente ele adoraria viajar, mas os intelectuais [Deleuze dá
uma risada], o que significa para eles viajar? Significa ir a conferências, no
outro lado do mundo se necessário, e tudo isso inclui um falar-antes e um falar-
depois com pessoas que saudam você muito simpaticamente, uma falar-depois
com pessoas que ouviram você muito educadamente, falar, falar, falar, diz
Deleuze. Assim, para ele, a viagem de um intelectual é o oposto da viagem.
Isto é, ir ao outro lado da terra para fazer algo que se pode fazer em casa, e
ver pessoas e falar antes, falar depois, trata-se de uma viagem monstruosa.
Tendo dito isso, Deleuze diz que ele sente uma grande simpatia por pessoas
que viajam, não se trata de nenhum princípio para ele, e ele diz que nem
sequer pretende estar com a razão, graças a Deus. Ele pergunta o que
significa viajar para ele? Primeiramente, há sempre um pouquinho de uma falsa
ruptura, o primeiro aspecto que faz com que a viajar para ele seja bastante
desagradável. Assim, a primeira razão: trata-se de uma ruptura barata, e
Deleuze sente-se exatamente da forma como foi expressada por Fitzgerald:
uma viagem não é suficiente para criar uma ruptura real. Se se trata de uma
questão de rupturas, diz Deleuze, há outras coisas que não a viagem, porque,
afinal, o que a gente vê? Pessoas que viajam muito, e talvez sejam orgulhosas
disso, alguém disse que é para encontrar um pai [Deleuze dá uma risada]. Eles
não deveriam se dar ao trabalho... Viajar pode realmente ser edipiano em um
certo sentido, diz ele, dando risadas. Deleuze conclui: eu digo, não, não dá!
A segunda razão está relacionada com uma frase admirável de Beckett que
afetou muito Deleuze. Beckett faz um de seus personagens dizer, mais ou
menos - Deleuze diz que é um mau citador, e a frase poderia ser dita de uma
forma melhor do que a que ele vai dizer: as pessoas são realmente idiotas,
está bem, mas não ao ponto de viajar por prazer. Deleuze acha esta frase
inteiramente satisfatória: sou idiota, diz ele, mas não ao ponto de viajar por
prazer, não, não a esse ponto.
E um terceiro aspecto da viagem: Parnet mencionou o termo "nômade", e
Deleuze admite que ele é muito fascinado com os nômades, mas trata-se de
pessoas que, precisamente, não viajam. Quem viaja são os emigrantes, e pode
haver pessoas perfeitamente respeitáveis que são forçadas a viajar, pessoas
exiladas, emigrantes. Trata-se de um tipo de viagem que não pode, de forma
alguma, ser ridicularizada, porque trata-se de formas sagradas de viagem, a
viagem forçada. Mas os nômades não viajam, diz Deleuze. Literalmente, eles
permanecem completamente imóveis, todos os especialistas em nômades
dizem isso. É porque os nômades não querem partir, porque ele se apegam à
terra, à sua terra. Sua terra torna-se deserta e eles se apegam a ela, eles só
podem ser nômades em sua terra, e é por força da vontade de ficar em sua
terra que eles se tornam nômades. Assim, em um certo sentido, pode-se dizer
que nada é mais imóvel que um nômade, que nada viaja menos que um
nômade. É porque eles não querem partir que eles são nômades. E é por isso
que eles são completamente perseguidos.
E, finalmente, diz Deleuze, quase o último aspecto da viagem - há uma frase
de Proust que é muito bonita que diz: afinal, o que a gente sempre faz quando
viaja é verificar algo, verificamos que uma cor sobre a qual sonhamos existe
realmente. E ele acrescenta algo imporante, insiste Deleuze: um mau sonhador
é alguém que não vai ver se a cor sobre a qual ele sonhou está realmente lá,
mas um bom sonhador sabe que a gente tem que ir verificar se a corestá
realmentelá. Deleuze acha que essa é uma boa concepção da viagem.
Parnet diz que se trata de um progresso fantástico, e Deleuze continua: há
viagens que são verdadeiras rupturas. Por exemplo, diz Deleuze, a fida de J.
M. G. Le Clézio, neste momento, parece ser uma das formas pelas quais ele
faz uma espécie de ruptura. Deleuze menciona o nome de Lawrence [T. E.]... e
depois diz que há muitos grandes escritores que ele admira que têm o sentido
da viagem. Stevenson é um outro exemplo, as viagens de Stevenson não são
desprezíveis, diz ele. Assim, Deleuze insiste que o que ele está dizendo não
pode ser generalizado, mas em termos de sua própria explicação, alguém que
não gosta de viajar provavelmente tem essas quatro razões.
Parnet pergunta se esse tema da viagem está ligado à lentidão natural de
Deleuze e Deleuze diz, não, que ele não concebe a viagem como sendo lenta,
mas que, em todo caso, ele não sente necessidade de se mover. Todas as
intensidades que ele tem são intensidades imóveis. As intensidades se
distribuem, ele diz, no espaço ou em outros sistemas que não estão
necessariamente em espaços exteriores. Deleuze assegura a Parnet que
quando ele lê um livro ou ouve música que ele considera belo, ele realmente
tem a sensação de estar entrando nesses estados e emoções que ele nunca
encontraria na viagem. Assim, pergunta ele, por que ele buscaria essas
emoções em lugares que não se quadram muito bem com ele, enquanto ele
tem as mais belas delas só para ele, em sistemas imóveis, como a música,
como a filosofia. Deleuze diz que há uma geo-música, uma geo-filosofia, que
ele considera serem países profundos, e que esses são seus países. Parnet
diz: "terras estrangeiras", e Deleuze continua dizendo que se trata de suas
próprias terras estrangeiras, que ele não encontra viajando.
Parnet diz que ele é a perfeita ilustração de que o movimento não está
localizado no deslocamento, mas ela observa que viajou um pouco, ao Líbano
para uma conferência, ao Canadá, aos EEUU. Deleuze diz, sim, mas ele tem
que dizer que ele sempre foi arrastado e que ele não faz mais isso porque ele
nunca deveria ter feito tudo aquilo, ele sente que ele fez muito. Ele também diz
que na época ele gostava de andar e agora ele anda menos bem, assim ele
não viaja mais. Mas ele lembra andando sozinho nas ruas de Beirute, da
manhã até à noite, não sabendo para onde estava indo. Ele diz que ele gosta
de ver uma cidade a pé, mas que isso acabou. [Deleuze acena com a cabeça].
INÍCIO
SPAÇOW de Wittgenstein ESPAALFABETO
Parnet diz, vamos para a letra W e Deleuze
diz, não há nada
sim, há Wittgenstein. Ela sabe que ele não significa nada para Deleuze, que é
apenas uma palavra. Deleuze diz que ele não gosta de falar sobre... Trata-se
de uma catástrofe filosófica. É exatamente o tipo de uma "escola", uma
regressão de toda filosofia, uma imensa regressão. Deleuze considera o tema
Wittgenstein muito triste. Eles impuseram um sistema de terror no qual, sob o
pretexto de fazer algo novo, trata-se da pobreza apresentada como grandeza.
Deleuze diz que não existe nenhuma palavra que possa expressar esse tipo de
perigo, mas esse perigo é um perigo recorrente, que não foi a primeira vez que
ocorreu. É uma coisa séria, uma vez que ele acha que os wittgensteinianos são
nocivos e destrutivos. Assim, pode haver um assassinato da filosofia, eles são
assassinos da filosofia, e por causa disso, devemos continuar vigilantes.
[Deleuze dá uma risada].
INÍCIO
SPAÇOX de Desconhecido, Y de IndizívelSPAALFABETO
Parnet diz que X é desconhecido e Y é indizível [Deleuze dá uma risada],
assim eles passam diretamente para a letra final do alfabeto.
INÍCIO
SPAÇOZ de ZiguezagueSPAALFABETO
Parnet diz que eles estão na última letra, Z, e Deleuze diz, "já era tempo!".
Parnet diz que não é o Z de Zorro, o Justiceiro, já que Deleuze deixou claro, ao
longo de todo o alfabeto, que ele não gosta de julgamentos. É o Z de
bifurcação, de iluminação, é a letra que encontramos em nomes de grandes
filósofos: Zen, Zaratustra, Leibniz, Nietzsche, Spinoza, BergZon [Deleuze dá
uma risada] e, naturalmente, o próprio Deleuze. Ele acha que o Z é uma
grande letra que estabelece um retorno a A, a mosca, o movimento de
ziguezague da mosca, o Z, a palavra final, nenhuma palavra depois do
ziguezague. Deleuze acha bom terminar com esta palavra.
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