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Cobaias de guerra

Spaniola


Cobaias de guerra

Mísseis de urânio empobrecido usados pelos Estados Unidos nos bombardeios ao Iraque e ao Kosovo emitem radiação e produzem danos permanentes em veteranos, civis e crianças.


Assim como boa parte dos veteranos de guerra, o canadense Terry Riordon nunca mais foi o mesmo depois que voltou do conflito no Golfo Pérsico, em 1991. Ninguém na cidade de Yarmouth, onde morava, conseguiu descobrir seu mal. Nove anos depois do fim da Tempestade no Deserto, como a batalha ficou conhecida, sua memória falhava, os olhos mudaram de cor e os problemas respiratórios pioravam. No início deste ano, no leito de morte - e ainda sem diagnóstico -, o soldado Riordon pediu à mulher que doasse seu corpo para os cientistas enfim desvendarem a doen 15215l1117p ça misteriosa. O laudo da autópsia foi bombástico: havia urânio empobrecido nas células dos ossos deteriorados pela doença que lhe tirou a vida. O soldado Riordon serviu no bloco de aliados dos Estados Unidos na luta contra Saddam Hussein e está entre as estimadas 80 mil vítimas da "síndrome da Guerra do Golfo". O metal tóxico é o subproduto do urânio enriquecido, que contém alto teor de U-235, tipo mais radioativo e instável do metal, o que explica seu uso como combustível para reatores e bombas nucleares. Para cada quilo de urânio enriquecido, sobram 200 quilos de urânio empobrecido, basicamente U-238, átomo que emite um tipo de radiação menos nocivo, porém muito mais duradouro: são precisos 4,5 bilhões de anos para que sua radiação caia pela metade. Desde 1940, quando os cientistas do Projeto Manhattan criaram a bomba atômica, os EUA sozinhos acumularam 520 mil toneladas de urânio empobrecido. Era um material inútil e de armazenagem cara. A indústria bélica encontrou então uma forma lucrativa de livrar-se desse lixo, atirando-o contra o inimigo. Por ser 2,5 vezes mais denso que o aço, o urânio empobrecido mostrou-se eficaz para perfurar blindagens de tanques e fortificações. Um míssil chega a romper um bloco de concreto enterrado no solo, a três metros de profundidade. Arma invisível - Foi por isso que a Força Aérea e o Exército dos EUA elegeram o dejeto nuclear como projétil de seus mísseis lançados pelos aviões de ataque A-10 e pelos tanques Abrams, muitos deles também blindados com urânio. A radioatividade emitida pelos mísseis feitos com urânio empobrecido, porém, funcionou como poderosa arma invisível, incapaz de distinguir inimigo de aliado, civil ou militar. A possibilidade de danos à saúde no longo prazo foi levantada pela primeira vez quando cerca de dez mil dos 500 mil soldados que participaram do conflito no Iraque passaram a sentir náusea, dor de cabeça, ter diarréia, queimaduras e outros sintomas que sugeriam envenenamento radioativo de baixa intensidade. "Esse é o pior tipo de radiação porque os danos podem levar décadas para surgir e afetam os filhos dos soldados por várias gerações", explica Ruy de Góes, especialista em questões nucleares na organização ambientalista Greenpeace. Em apenas quatro dias de bombardeio aéreo, em 1991, os jatos e tanques americanos dispararam 320 toneladas de urânio sobre alvos iraquianos. As estatísticas mostram que houve significativo aumento nos casos de crianças iraquianas nascidas com anormalidades, além da maior incidência de câncer, especialmente nos pulmões e rins. Em 1990 morreram de câncer 7.058 iraquianos, número que saltou para 8.526 dois anos depois. A pior faceta desses mísseis aparece quando eles atingem o alvo, espalhando chamas e partículas de urânio que não respeitam fronteiras geopolíticas. A garoa de poeira radioativa viaja ao sabor do vento, misturando-se ao ar, e seu poder letal é devastador quando o metal é inalado ou ingerido. "Não há nível de radiação sem risco", diz o professor Ildo Sauer, do Instituto Eletrotécnico e Energia da Universidade de São Paulo. "Usar urânio empobrecido como cabeça de míssil é tecnicamente interessante porque o metal tem pouco volume e grande força de impacto", ensina Sauer. Os militares americanos alegam que a radioatividade do urânio empobrecido não oferece perigo e que a avalanche de doenças pós-guerra deve ser resultado das armas químicas usadas pelos iraquianos, ou mesmo da fumaça produzida pelo incêndio de poços de petróleo. O aparente reaparecimento do problema entre veteranos da guerra de Kosovo, onde esses fatores não existiram, indica que os riscos do material radioativo precisam ser melhor investigados. De preferência antes da próxima intervenção americana que pode acontecer na Colômbia, junto à fronteira brasileira. Novas suspeitas - Um procurador das Forças Armadas italianas alertou para o drama das vítimas do conflito na ex-Iugoslávia, em 1999. Ele investiga casos de leucemia (incluindo pelo menos uma morte) entre soldados italianos que participaram da guerra em Kosovo e, segundo o jornal britânico The Times, o Ministério da Defesa francês também conduz um inquérito sigiloso sobre contaminação das tropas aliadas. Mais uma vez, suspeita-se que a causa esteja no urânio empobrecido. Um documento público da Agência de Proteção Ambiental do próprio governo americano (EPA) reconhece: "urânio empobrecido é radioativo, tóxico e cancerígeno". E que os trabalhadores expostos à inalação em solo contaminado podem sofrer de doenças pulmonares. Em abril do ano passado, oito anos depois da eclosão do conflito no Golfo, uma expedição visitou os campos de batalha e descobriu que os níveis de radiação eram 35 vezes mais elevados do que a taxa ambiental considerada normal. Os locais próximos aos tanques e blindados atingidos por mísseis americanos, a radioatividade era 50 vezes maior do que a média. O biólogo britânico Roger Coghill estimou que o bombardeio de Kosovo deve causar pelo menos 10 mil mortes por câncer nos Bálcãs e não só nas áreas diretamente atingidas: na Sérvia, bombardeada por 500 mil balas de urânio empobrecido, a radiação era 30 vezes superior ao normal, mas no Norte da Grécia, a mais de 100 quilômetros da área de conflito, a radioatividade aumentou 25%. Em suas memórias de guerra, um mecânico do Exército americano contou que em 1991, ele e seus colegas vestiam shorts e camiseta enquanto desmontavam veículos danificados por bombas dos aliados. Foram surpreendidos pela chegada de dois peritos em trajes especiais com detectores de radiação que avisaram que suas roupas e botas estavam contaminadas. Hoje as armas feitas de material radioativo, uma ameaça invisível aos olhos, não são exclusividade dos EUA. Países como a França, Rússia, Israel, Arábia Saudita, Egito, Kuwait, Paquistão e Taiwan detêm armas semelhantes. Os soldados americanos agora só temem que o tiro saia pela culatra.



Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa e Darlene Menconi


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